São Paulo, terça-feira, 19 de dezembro de 2006

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BERNARDO CARVALHO

A precariedade convertida em valor


Castorf desnaturaliza a naturalidade com que costumamos nos ver e com que nos recusamos a ver o racismo entre nós.

"O ANJO NEGRO" (1946), de Nelson Rodrigues, pressupõe pelo menos duas coisas: (1) que o país em que a peça foi escrita (encenada em abril de 1948, no Rio de Janeiro, depois de ter sido interditada três meses antes) é racista e (2) que o público local lida com o racismo de um modo tão peculiar e perverso, que ao dramaturgo só resta representá-lo por meio do absurdo e da obsessão mais desvairada, lançando mão da virulência tragicômica para alcançar algum tipo de reconhecimento onde a tragédia e a seriedade moralizante do drama já não produzem nenhum efeito.
Há algumas semanas, o alemão Frank Castorf apresentou em São Paulo uma montagem de "O Anjo Negro" em que se servia a gosto das peculiaridades do texto e do país, fazendo saltar aos olhos do espectador uma radicalidade iconoclasta raramente vista nas montagens brasileiras de Nelson Rodrigues.
Na peça, uma mulher branca, casada com um médico negro que a estuprou na adolescência e que a mantém presa, isolada do mundo, afoga os próprios filhos ao nascerem, porque são negros. Sonha com um filho branco. Sua chance aparece finalmente quando o irmão de criação do marido bate à porta. O homem, que é branco e cego, a engravida e lhe dá uma filha que o marido negro acabará cegando com ácido.
Assim como o texto rodriguiano ignora todos os limites do bom senso ao transpor a tragédia grega para um universo que lhe é refratário, terminando por criar um gênero próprio e original, Castorf também radicaliza a norma até invertê-la contra si mesma. Os personagens negros da peça de Nelson Rodrigues são interpretados por atores brancos e vice-versa, o que acirra o absurdo original, pervertendo ainda mais a perversão. O discurso racista de personagens brancos na boca de atores negros cria um curto-circuito que se completa com a inserção de trechos de "A Missão", peça de Heiner Müller, sobre a tentativa abortada de transpor o ideário da Revolução Francesa para uma sublevação de escravos na Jamaica.
Tanto em Nelson Rodrigues como em Heiner Müller, o que está em jogo são idéias fora do lugar: a tragédia grega e a revolução exportadas para a periferia do Ocidente. A tragédia de Nelson Rodrigues não se sustentaria se não fosse no limiar do grotesco. Castorf entendeu perfeitamente os desafios desse limite e a potência dessa inadequação escancarada pelo dramaturgo: transpor o trágico para um lugar onde ele só pode ser recebido com risos. Um país onde a tragédia não pode ser levada a sério, onde a realidade converte toda tentativa de entrecho trágico em artifício propenso ao escárnio.
Um dos aspectos mais inteligentes da encenação de Castorf é se servir da perversão local para pervertê-la. O diretor transforma em paroxismo o escracho que costuma ser norma na comédia brasileira, levando a avacalhação ao limite do desequilíbrio. Por meio de um deslocamento original, faz florescer o que já estava em germe no texto de Nelson Rodrigues e que é incompatível com a reverência paradoxal com que o autor costuma ser encenado no Brasil.
O texto rodriguiano clama pelo desconforto da norma confrontada com o próprio ridículo. As boas intenções são sempre reduzidas a farsa e hipocrisia. O discurso da igualdade, quando transposto para a periferia, vira letra morta. Contra o racismo, portanto, só a radicalização obsessiva do seu próprio discurso.
De maneira análoga, Castorf se apropria do que é "natural" - neste caso, a forte tendência para a esculhambação e para a chanchada na tradição da comédia brasileira - e lhe insufla uma violência desestabilizadora, capaz de desnaturalizar tudo, pervertendo as funções originais do humor até provocar a perplexidade e o constrangimento do público.
Nada é mais fácil e automático para um ator brasileiro (em geral, mais intuitivo e menos técnico) do que improvisar o escracho. Castorf converte essa "naturalidade" em estranhamento. A facilidade vira desconforto (para o ator, para o espectador) e, por contraposição, o que era precário ganha um valor inesperado - uma conversão que o incrível cenário de Thiago Bortolozzo explicita de forma genial.
Ao mesmo tempo em que o normal se torna estranho, o que era lama passa a reluzir como ouro. Ao recuperar um Nelson Rodrigues recalcado pela auto-imagem da cultura brasileira, Castorf desnaturaliza a naturalidade com que costumamos nos ver e com que nos recusamos a ver o racismo entre nós. E nos confronta com o grotesco do nosso orgulho oportunista, cego ou hipócrita de democracia racial.


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