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BERNARDO CARVALHO
A precariedade convertida em valor
Castorf desnaturaliza a naturalidade com que costumamos nos ver e com que nos recusamos a ver o racismo entre nós.
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"O ANJO NEGRO" (1946), de
Nelson Rodrigues, pressupõe pelo menos duas
coisas: (1) que o país em que a peça
foi escrita (encenada em abril de
1948, no Rio de Janeiro, depois de
ter sido interditada três meses antes) é racista e (2) que o público local
lida com o racismo de um modo tão
peculiar e perverso, que ao dramaturgo só resta representá-lo por
meio do absurdo e da obsessão mais
desvairada, lançando mão da virulência tragicômica para alcançar algum tipo de reconhecimento onde a
tragédia e a seriedade moralizante
do drama já não produzem nenhum
efeito.
Há algumas semanas, o alemão
Frank Castorf apresentou em São
Paulo uma montagem de "O Anjo
Negro" em que se servia a gosto das
peculiaridades do texto e do país, fazendo saltar aos olhos do espectador
uma radicalidade iconoclasta raramente vista nas montagens brasileiras de Nelson Rodrigues.
Na peça, uma mulher branca, casada com um médico negro que a estuprou na adolescência e que a mantém presa, isolada do mundo, afoga
os próprios filhos ao nascerem, porque são negros. Sonha com um filho
branco. Sua chance aparece finalmente quando o irmão de criação do
marido bate à porta. O homem, que
é branco e cego, a engravida e lhe dá
uma filha que o marido negro acabará cegando com ácido.
Assim como o texto rodriguiano
ignora todos os limites do bom senso ao transpor a tragédia grega para
um universo que lhe é refratário,
terminando por criar um gênero
próprio e original, Castorf também
radicaliza a norma até invertê-la
contra si mesma. Os personagens
negros da peça de Nelson Rodrigues
são interpretados por atores brancos e vice-versa, o que acirra o absurdo original, pervertendo ainda mais
a perversão. O discurso racista de
personagens brancos na boca de
atores negros cria um curto-circuito
que se completa com a inserção de
trechos de "A Missão", peça de Heiner Müller, sobre a tentativa abortada de transpor o ideário da Revolução Francesa para uma sublevação
de escravos na Jamaica.
Tanto em Nelson Rodrigues como
em Heiner Müller, o que está em jogo são idéias fora do lugar: a tragédia
grega e a revolução exportadas para
a periferia do Ocidente. A tragédia
de Nelson Rodrigues não se sustentaria se não fosse no limiar do grotesco. Castorf entendeu perfeitamente os desafios desse limite e a
potência dessa inadequação escancarada pelo dramaturgo: transpor o
trágico para um lugar onde ele só pode ser recebido com risos. Um país
onde a tragédia não pode ser levada
a sério, onde a realidade converte toda tentativa de entrecho trágico em
artifício propenso ao escárnio.
Um dos aspectos mais inteligentes da encenação de Castorf é se servir da perversão local para pervertê-la. O diretor transforma em paroxismo o escracho que costuma ser norma na comédia brasileira, levando a
avacalhação ao limite do desequilíbrio. Por meio de um deslocamento
original, faz florescer o que já estava
em germe no texto de Nelson Rodrigues e que é incompatível com a reverência paradoxal com que o autor
costuma ser encenado no Brasil.
O texto rodriguiano clama pelo
desconforto da norma confrontada
com o próprio ridículo. As boas intenções são sempre reduzidas a farsa e hipocrisia. O discurso da igualdade, quando transposto para a periferia, vira letra morta. Contra o racismo, portanto, só a radicalização
obsessiva do seu próprio discurso.
De maneira análoga, Castorf se
apropria do que é "natural" - neste
caso, a forte tendência para a esculhambação e para a chanchada na
tradição da comédia brasileira - e
lhe insufla uma violência desestabilizadora, capaz de desnaturalizar tudo, pervertendo as funções originais
do humor até provocar a perplexidade e o constrangimento do público.
Nada é mais fácil e automático para um ator brasileiro (em geral, mais
intuitivo e menos técnico) do que
improvisar o escracho. Castorf converte essa "naturalidade" em estranhamento. A facilidade vira desconforto (para o ator, para o espectador)
e, por contraposição, o que era precário ganha um valor inesperado -
uma conversão que o incrível cenário de Thiago Bortolozzo explicita
de forma genial.
Ao mesmo tempo em que o normal se torna estranho, o que era lama passa a reluzir como ouro. Ao recuperar um Nelson Rodrigues recalcado pela auto-imagem da cultura
brasileira, Castorf desnaturaliza a
naturalidade com que costumamos
nos ver e com que nos recusamos a
ver o racismo entre nós. E nos confronta com o grotesco do nosso orgulho oportunista, cego ou hipócrita
de democracia racial.
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