São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

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Crítica/"Gomorra"

Diretor italiano evita denúncia fácil e filma mundo estranho

"Gomorra" apresenta o submundo da Camorra, máfia do sul da Itália

Divulgação
Cena de "Gomorra", filme de Matteo Garrone baseado em livro cujo autor é jurado de morte

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Diante de um filme de Nanni Moretti, temos a impressão, antes de tudo, de estar diante de uma personalidade, de um artista que desenvolve seu ofício com grande talento.
Ele é italiano, claro, e isso está em sua fala, em seu modo de se comportar, no humor. Mas desse fato nós nos damos conta em segunda instância, por relevante que seja.
Diante de "Gomorra", nossa sensação é bem outra. É como se assistíssemos renascer a escola italiana de cinema, que foi uma das melhores do mundo antes de entrar em decadência, a caminho de uma inexplicável extinção. Alguns sinais já haviam surgido, aqui e ali, dando conta desse ressurgimento do filme italiano: "Novo Mundo", há não muito tempo, de Emanuele Crialese, era um bom exemplo disso.
Existe alguma coisa a mais em "Gomorra", que, como se sabe, é adaptado do livro de Roberto Saviano, famoso não só pelo sucesso internacional, como por ter valido a seu autor o fato de se tornar jurado de morte pela Camorra, a máfia napolitana. O livro é um relato jornalístico, não o filme.

Modo de vida
Frases publicitárias o aproximam de "Cidade de Deus", mas isso parece apenas uma maneira amadorística de seduzir os espectadores. Se fosse para fazer uma comparação, o longa italiano dialoga mais com "Do Outro Lado da Lei", o filme argentino de Pablo Trapero. Em última análise, a máfia no sul da Itália é um modo de vida.
O livro talvez tenha implicações mais contundentes. A força do filme vem, ao contrário, dos seus silêncios. Dos seus notáveis silêncios. Ali está um vasto e pobre condomínio, por onde passeia um cobrador. Ou um ateliê de costura recheado de imigrantes ilegais. Ou ainda, claro, o tráfico de drogas.
Nada que surge na tela se assemelha a uma anomalia: as coisas são assim, vive-se assim, não é possível que seja muito diferente. Talvez por isso, o que mais nos interessa no painel desenvolvido por Garrone sejam as histórias individuais, às quais nem chegamos a ter um acesso completo, como a do cobrador que passa de casa em casa, ou dos garotos tolos que tentam atravessar negócios de cuja sutileza de organização nem ao menos parecem duvidar. Ou, ainda, o chefe de um ateliê de alta costura que, para sobreviver dignamente, ensina imigrantes chineses a trabalhar com moda.
A maneira de narrar de Garrone não nos leva, como nas concepções clássicas, de fora para dentro dos acontecimentos. Começamos fora e terminamos fora, como se o objetivo do filme fosse, precisamente, o de produzir estranhamento, impedir nossa familiaridade com tal objeto.
Porque Garrone sabe que a eficiência de denúncia de um filme de ficção é nula (foi de denúncia em denúncia que o cinema italiano perdeu boa parte de seu encanto, aliás, bem antes de Berlusconi ter o poder que tem). No caso, existe um livro jornalístico que faz essa parte com eficiência. Ao filme cabe, então, reter fatos que acontecem estranhamente, como se fossem apenas um ligeiro desvio da realidade. Não são tiroteios, degolas ou algo do tipo.
São, antes, roupas que se usam, comportamentos, formas de respeito etc.
Fazem parte de um conjunto que existe ao nosso lado -inclusive aqui no Brasil, em São Paulo- e que ignoramos, em parte porque queremos, em parte porque não conhecemos seus códigos.
O filme se refere, entre outros, à indústria italiana da moda, seu modo de agir ligado às máfias e à exploração de imigrantes ilegais. Ninguém, entre nós, tem o direito de gritar "escândalo". Sabemos muito bem o que passam os imigrantes ilegais (no caso brasileiro, quase escravizados) em ateliês que não é preciso sair do centro de São Paulo para saber que existem. Somos como Nápoles. Aqui também mundos secretos existem no subsolo.
Garrone podia ter feito, a respeito, um novo "Metrópolis", longa de Lang de 1926. Rejeitou o expressionismo e fez bem. Seu filme tem a discrição, a limpidez e até certa sujeira, coisas de grandes obras.


GOMORRA
Produção:
Itália, 2008
Direção: Matteo Garrone
Com: Toni Servillo, Gianfelice Imparato, Maria Nazionale
Onde: a partir de hoje no Cine Bombril, Reserva Cultural e circuito
Classificação: não indicado a menores de 18 anos
Avaliação: ótimo


2
milhões de exemplares foi o total de exemplares vendidos do livro de Roberto Saviano em 32 países. O Brasil é o 33º a lançá-lo.


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