São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

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Crítica/erudito

Discos celebram Neukomm

Novas gravações tentam tirar do esquecimento compositor austríaco ativo na corte de d. João 6º

Em CD, Rosana Lanzelotte, ao pianoforte, e Ricardo Kanji, à flauta, revisitam algumas das peças; Orquestra Barroca grava uma sinfonia

JOÃO BATISTA NATALI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O compositor austríaco Sigismund Ritter von Neukomm (1778-1858), que por cinco anos gravitou na corte de d. João 6º, no Rio, sai aos poucos do esquecimento a que foi relegado. Rosana Lanzelotte, ao pianoforte, e Ricardo Kanji, à flauta, acabam de lançar em CD e DVD "Cavaleiro Neukomm, Criador da Música de Câmara no Brasil", com seis das 70 peças que ele escreveu por aqui.
Também está sendo lançado pela Orquestra Barroca, regida por Luís Otávio Santos, gravação feita em julho, no Festival de Juiz de Fora, da "Sinfonie a Grand Orchestre", uma das duas que Neukomm compôs e a primeira sinfonia de modelo clássico escrita no Brasil.
Neukomm foi eclipsado por geniais contemporâneos, como Beethoven e Schubert. Caiu no rol dos esquecidos também em razão de seu nomadismo -esteve, além do Rio, em Viena, São Petesburgo e Paris. Deixou de ser defendido por correntes musicais nacionais que operam como lobbies na definição do que poderá entrar para a posteridade. Trazia, por fim, a tradição germânica que, por razões políticas, era alvo de implicância do nacionalismo francês.
Mesmo assim, a biografia de Neukomm (pronuncia-se "nói-com") é um caldeirão de surpresas. Estudou também medicina e botânica. Parte de sua vida está ligada ao príncipe Talleyrand, ministro das Relações Exteriores de Napoleão 1º, de quem foi assessor, "pianista particular" e possivelmente espião. Chegou ao Rio, em 1816, na comitiva do duque de Luxemburgo, embaixador francês à corte portuguesa.
Não foi compositor da capela real de d. João 6º. Mas teve entre seus alunos de composição o futuro Pedro 1º (aliás, um músico amador bem acima da média) e Francisco Manoel da Silva, o autor do Hino Nacional. Nasceu em Salzburgo, na casa em frente à de Mozart. Estudou em Viena com Joseph Haydn, que disse certa vez que seu melhor aluno fora Beethoven, mas que seu aluno predileto se chamava Neukomm. Em texto autobiográfico redigido cinco anos antes de morrer, afirmava ter relacionado 1.780 obras compostas, produção numericamente excepcional, que pode ter se aproximado das 2.000, boa parte delas publicada. Não há um catálogo de sua música. O musicólogo mineiro José Maria Neves estava empenhado nessa tarefa ao morrer, em 2002.
A cravista e pianista Rosana Lanzelotte localizou as partituras agora gravadas, como o "Duo para Flauta e Pianoforte" (Rio, 1820) em pesquisa na Biblioteca Nacional da França. "Neukomm foi um personagem musical importante", diz ela. Antes de embarcar para o Rio seu nome já constava dos almanaques como um músico de primeira linha. Representou um poço de inovações no Brasil, na época apegado à tradição da música sacra. Foi assim, por exemplo, que escreveu 12 peças militares dedicadas a dona Leopoldina, ou então peças para piano que ampliavam no Rio o espaço da música de salão. "E com uma escrita muito virtuosística", diz Lanzelotte.
Ela é autora de um texto, "Os Esquecidos dos 200 Anos", em que justamente situa Neukomm como personagem central nas mudanças de concepções estéticas do pós-1808. O Brasil não era um deserto musical. Havia o barroco mineiro, e ainda estava na ativa o padre José Maurício Nunes Garcia, o maior compositor brasileiro daquele período. O flautista Ricardo Kanji diz ser "impressionante a qualidade e a peculiaridade da música" de Neukomm. "Ele não se parece com ninguém, é muito original." Essa música se enquadrava nos padrões socialmente aceitos pelas elites da Europa Central. "Mas suas melodias são de uma criatividade impressionante, com harmonias e modulações muito ricas."

Europa e lundu
Santos regeu no mesmo CD a "Sinfonia Haffner", de Mozart. Especialista nas técnicas de interpretação de época (barroco e clássico) e também com parte de sua carreira na Holanda, ele qualifica Neukomm como um personagem singular. "Não foi um gênio, mas tem seu vulto próprio", afirma.
A sinfonia que gravou com sua orquestra é européia na linguagem, mas remete ao lundu e às modinhas. Esse respeito despreconceituoso pela música brasileira, afirma Lanzelotte, é exemplificado pelas 20 modinhas de Joaquim Manoel da Câmara, que Neukomm publicou ao voltar à França. Com isso, sem querer, evitou que o colega caísse no anonimato.


CAVALEIRO NEUKOMM, CRIADOR DA MÚSICA DE CÂMARA NO BRASIL

Artista: Rosana Lanzelotte (pianoforte) e Ricardo Kanji (flauta)
Lançamento: Biscoito Fino
Quanto: R$ 31,90
Avaliação: ótimo

ORQUESTRA BARROCA DO 19º FESTIVAL INTERNACIONAL DE MÚSICA COLONIAL BRASILEIRA E MÚSICA ANTIGA DE JUIZ DE FORA

Artista: Luís Otávio Santos (regência)
Lançamento: Centro Cultural Pró-Música (tel. 0/xx/32/3215-3951)
Quanto: R$ 30
Avaliação: ótimo



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