São Paulo, sábado, 19 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pintor se moldou russo, judeu e francês

Identidades do lugar onde nasceu, da origem familiar e do local que escolheu para viver se fundiram na obra de Chagall

Para biógrafa, obra atingiu o auge quando a cidade natal "ainda o embalava (1914-21), mas com a experiência de Paris para desconstruí-la"


DA REPORTAGEM LOCAL

Marc Chagall nasceu em Vitebsk, que atualmente pertence a Belarus. À época de seu nascimento, em 1887, Vitebsk era uma das cidadezinhas judaicas -shtetlech- no Território do Assentamento, área ocidental do Império Russo onde era permitida a residência de judeus.
Ali, Catarina a Grande havia instalado, pouco menos de cem anos antes do nascimento de Chagall, um bolsão para tentar impedir o acesso dos judeus às demais áreas de seu império, uma vez que não se converteriam ao catolicismo ortodoxo russo nem cabiam bem na rígida estratificação social russa.
Proibidos também de morar nas cidades mais importantes da região, como Kiev e Ialta, pequenos comerciantes se instalavam na área que chegou a reunir cerca de 5 milhões de pessoas e sobreviveu até a Revolução Russa, em 1917.
Marc Chagall, porém, travou uma relação de tal modo umbilical com a sua cidade natal que precisava sair dali para enxergá-la direito. "Ele admitiu que era um artista obcecado pela mãe e para quem a cidade natal teve forte importância psicológica e artística", ressalta a jornalista inglesa Jackie Wullschlager, autora da biografia concluída no ano passado, após oito anos de pesquisa e lançada agora no Brasil.
"Quando terminei a "Life of Hans Christian Andersen" [a vida de Hans Christian Andersen] em 2000, estava pensando, com o fim do século 20, qual figura literária ou artística formaria um prisma ideal através do qual poderia recontar, tanto na vida quanto na arte, os triunfos e horrores do século."
Chagall, que tinha impressionado a então crítica literária numa exposição na Royal Academy, de Londres, em 1985 -e morrera pouco antes do fim da mostra- apareceu a Wullschlanger a opção ideal.
O pintor viveu clandestinamente em São Petersburgo, encontrou um lar artístico em Paris -e apoio em figuras icônicas da cultura francesa daquele começo de século, como os escritores Blaise Cendrars e Guillaume Apollinaire- e chegou a ser convocado para engrossar as fileiras do Exército para defender o Império Russo, aquele mesmo que o repelia para as franjas de seu território.
"O drama de ser estrangeiro na Rússia e na França fez com que nunca esquecesse sua origem judia. É significativo que seus maiores trabalhos tenham sido produzidos entre 1917-21, quando houve espaço para que os judeus desempenhassem um papel vital e autêntico na vida cultural russa."
A identidade judaica, ligada à memória de Vitebsk, era indissociável do pintor. "Se eu não fosse judeu, não teria me tornado artista -ou teria sido um outro tipo de artista", ele mesmo dizia. "A obra de Chagall teve seu auge quando Vitebsk ainda o embalava, de 1914 a 21, mas já com a experiência de Paris -para ter algum distanciamento e adquirir a linguagem formal com a qual desconstruiria Vitebsk", diz a biógrafa.
El Lissitsky, nome essencial da vanguarda russa, era colega de Chagall nas aulas de pintura. Kandinsky, embora distante, percorria caminhos parecidos.
Chagall adotou e foi adotado pela França. O pintor "se tornou um luminar da arte nacional numa época em que esse país finalmente perdia seu ímpeto cultural diante dos EUA".
Ao lado das cidades, Chagall inscreve em sua formação três mulheres: Thea, seu primeiro modelo nu, Bella, amor arrebatador e companheira nas costuras pela Europa, morta no exílio americano, e Vava, que o acompanhou até o fim da vida. (ALEXANDRA MORAES)


Texto Anterior: O homem que estava lá
Próximo Texto: Trecho
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.