São Paulo, sábado, 19 de dezembro de 2009

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LIVROS

Crítica/"Os Porões do Vaticano'/"Os Moedeiros Falsos"

Clássicos modernos de André Gide resistem à força do tempo

Além de dois romances, Estação Liberdade lança diário e conto autobiográfico

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Livros envelhecem e viram pó, não resta dúvida. A maior parte dos romances de vanguarda do início do século 20 desapareceu. Apenas uma pequena fração deles conquistou o direito à segunda vida. Da obra de André Gide (1869-1951), ao menos dois romances estão conseguindo resistir à força do tempo: "Os Porões do Vaticano" (1914) e "Os Moedeiros Falsos" (1925).
A Estação Liberdade está relançando, em nova tradução, esses dois romances. Com eles chegam também duas obras até agora inéditas no Brasil: "Diário dos Moedeiros Falsos", mantido durante os anos de redação do romance, e o conto "O Pombo-Torcaz" (1907), publicado na França meio século após a morte do autor.
Originário da alta burguesia e Prêmio Nobel de Literatura em 1947, Gide foi um dos autores mais controvertidos e influentes de sua época. Estão presentes em sua obra os conflitos morais e religiosos que o acompanharam ao longo da vida, alimentados pelo constante confronto entre sua homossexualidade e o moralismo dominante.
Gide não suportava a ideia de pertencer a uma escola literária. Porém, se conseguiu manter-se distante de uma escola em particular, não conseguiu fugir ao zeitgeist [o espírito do tempo]. No início do século 20 a vasta onda chamada modernismo ganhava força e altura.
Para romancistas como James Joyce, Alfred Döblin e Virginia Woolf era imperativo mimetizar a vida. Se a vida é desordenada, confusa e subjetiva, o romance também devia ser.

Enredo multifacetado
O satírico "Os Porões do Vaticano" e o metalinguístico "Os Moedeiros Falsos" romperam com a narrativa realista. Mas o choque provocado por esse rompimento já foi totalmente assimilado, diluiu-se no tempo.
Gerações de escritores incorporaram, por exemplo, a "mise en abîme" (o procedimento do livro dentro do livro). Não há quase nada nos dois romances que ainda possa causar estranhamento aos leitores de hoje. Mundo volúvel. O que antes se mostrou confuso e desafinado, agora é o seu oposto: elegante e harmônico. Melhor para os leitores. Melhor para Gide, que conseguiu vencer a primeira barreira imposta pelo tempo.

Ataque à Igreja Católica
"Os Porões do Vaticano" ataca, pela via do cômico, a Igreja Católica e suas buscas pelo homem impossível, não erotizado, plenamente virtuoso e íntegro. "Os Moedeiros Falsos" amplia esse ataque pela via da reflexão moral, denunciando as adulterações da ideologia moderna. Em ambos está o problema central na obra de Gide: a falsificação. Onde outros viam apenas a verdade absoluta, o romancista enxergava uma ampla rede de verdades. Ele percebia as relações sociais quase sempre pervertidas pelos erros de comunicação, pelas moedas falsas da linguagem.
Gide trata dessa rede de verdades também no "Diário dos Moedeiros Falsos", que dialoga com o diário de Édouard, o protagonista-romancista de "Os Moedeiros Falsos". Esse saboroso "caderno de estudos" mostra os bastidores da mente criativa do autor, ampliando as variadas reflexões reunidas nos romances.
Fechando o conjunto, um mimo editorial. "O Pombo-Torcaz" é um conto erótico e autobiográfico, sobre o encontro amoroso de Gide com um jovem chamado Ferdinand, que "arrulhava" ao fazer amor.
Escrito numa época em que o homossexualismo era não apenas marginal, mas fora da lei, esse breve relato é uma delicada vitória do desejo e da liberdade sobre as falsificações.

NELSON DE OLIVEIRA é escritor, autor de "Ódio Sustenido" (Língua Geral), entre outros.


OS PORÕES DO VATICANO

Autor: André Gide
Tradução: Mário Laranjeira
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 42 (256 págs.)
Avaliação: ótimo

OS MOEDEIROS FALSOS

Autor: André Gide
Tradução: Mário Laranjeira
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 62 (424 págs.)
Avaliação: ótimo

DIÁRIO DOS MOEDEIROS FALSOS

Autor: André Gide
Tradução: Mário Laranjeira
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 31 (144 págs.)
Avaliação: bom

O POMBO-TORCAZ

Autor: André Gide
Tradução: Mauro Pinheiro
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 28 (96 págs.)
Avaliação: bom




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