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LIVROS
Crítica/"Os Porões do Vaticano'/"Os Moedeiros Falsos"
Clássicos modernos de André Gide resistem à força do tempo
Além de dois romances, Estação Liberdade lança diário e conto autobiográfico
NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Livros envelhecem e viram pó, não resta dúvida. A maior parte dos
romances de vanguarda do início do século 20 desapareceu.
Apenas uma pequena fração
deles conquistou o direito à segunda vida. Da obra de André
Gide (1869-1951), ao menos
dois romances estão conseguindo resistir à força do tempo: "Os Porões do Vaticano"
(1914) e "Os Moedeiros Falsos"
(1925).
A Estação Liberdade está relançando, em nova tradução,
esses dois romances. Com eles
chegam também duas obras até
agora inéditas no Brasil: "Diário dos Moedeiros Falsos",
mantido durante os anos de redação do romance, e o conto "O
Pombo-Torcaz" (1907), publicado na França meio século
após a morte do autor.
Originário da alta burguesia e
Prêmio Nobel de Literatura em
1947, Gide foi um dos autores
mais controvertidos e influentes de sua época. Estão presentes em sua obra os conflitos
morais e religiosos que o acompanharam ao longo da vida, alimentados pelo constante confronto entre sua homossexualidade e o moralismo dominante.
Gide não suportava a ideia de
pertencer a uma escola literária. Porém, se conseguiu manter-se distante de uma escola
em particular, não conseguiu
fugir ao zeitgeist [o espírito do
tempo]. No início do século 20
a vasta onda chamada modernismo ganhava força e altura.
Para romancistas como James
Joyce, Alfred Döblin e Virginia
Woolf era imperativo mimetizar a vida. Se a vida é desordenada, confusa e subjetiva, o romance também devia ser.
Enredo multifacetado
O satírico "Os Porões do Vaticano" e o metalinguístico "Os
Moedeiros Falsos" romperam
com a narrativa realista. Mas o
choque provocado por esse
rompimento já foi totalmente
assimilado, diluiu-se no tempo.
Gerações de escritores incorporaram, por exemplo, a "mise
en abîme" (o procedimento do
livro dentro do livro). Não há
quase nada nos dois romances
que ainda possa causar estranhamento aos leitores de hoje.
Mundo volúvel. O que antes
se mostrou confuso e desafinado, agora é o seu oposto: elegante e harmônico. Melhor para os leitores. Melhor para Gide, que conseguiu vencer a primeira barreira imposta pelo
tempo.
Ataque à Igreja Católica
"Os Porões do Vaticano" ataca, pela via do cômico, a Igreja
Católica e suas buscas pelo homem impossível, não erotizado, plenamente virtuoso e íntegro. "Os Moedeiros Falsos" amplia esse ataque pela via da reflexão moral, denunciando as
adulterações da ideologia moderna. Em ambos está o problema central na obra de Gide: a
falsificação. Onde outros viam
apenas a verdade absoluta, o
romancista enxergava uma ampla rede de verdades. Ele percebia as relações sociais quase
sempre pervertidas pelos erros
de comunicação, pelas moedas
falsas da linguagem.
Gide trata dessa rede de verdades também no "Diário dos
Moedeiros Falsos", que dialoga
com o diário de Édouard, o protagonista-romancista de "Os
Moedeiros Falsos". Esse saboroso "caderno de estudos"
mostra os bastidores da mente
criativa do autor, ampliando as
variadas reflexões reunidas nos
romances.
Fechando o conjunto, um
mimo editorial. "O Pombo-Torcaz" é um conto erótico e
autobiográfico, sobre o encontro amoroso de Gide com um
jovem chamado Ferdinand,
que "arrulhava" ao fazer amor.
Escrito numa época em que o
homossexualismo era não apenas marginal, mas fora da lei,
esse breve relato é uma delicada vitória do desejo e da liberdade sobre as falsificações.
NELSON DE OLIVEIRA é escritor, autor de "Ódio Sustenido" (Língua Geral), entre outros.
OS PORÕES DO VATICANO
Autor: André Gide
Tradução: Mário Laranjeira
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 42 (256 págs.)
Avaliação: ótimo
OS MOEDEIROS FALSOS
Autor: André Gide
Tradução: Mário Laranjeira
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 62 (424 págs.)
Avaliação: ótimo
DIÁRIO DOS MOEDEIROS FALSOS
Autor: André Gide
Tradução: Mário Laranjeira
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 31 (144 págs.)
Avaliação: bom
O POMBO-TORCAZ
Autor: André Gide
Tradução: Mauro Pinheiro
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 28 (96 págs.)
Avaliação: bom
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