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CRÍTICA
Israelense usa o cinema para ultrapassar fronteiras
CÁSSIO STARLING CARLOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Através dos vidros de uma
picape vê-se o espaço passar.
De repente, a ele se sobrepõe o
tempo, um fragmento da memória que se impõe ali sem a ruptura
incômoda do flashback. O assombro de tal experiência é uma das
tantas que Amos Gitaï oferece
neste "Free Zone", filme que completa o tríptico do cineasta israelense sobre a vida contemporânea
no barril de pólvora do Oriente
Médio -os anteriores foram
"Alila" e "Terra Prometida".
O formato é o de um road movie, mas não daquele tipo existencialista que predominou desde
que muitos cineastas começaram
a ler Kerouac. Dele, Gitaï preserva
a forma aberta, o que levou alguns
críticos a receberem mal o filme,
acusando-o de ter sido feito às
pressas e sem um roteiro bem-acabado. Ora, parece que é daí
que decorre sua riqueza, pois, ao
se lançar na estrada, Gitaï consegue resolver o desafio que se propõe de início: filmar politicamente uma geografia humana.
Não se trata da geografia dos
mapas ou daquela embutida na
geopolítica, mas de um conhecimento dos territórios que só se alcança à medida que o filme os
percorre. Ao fazê-lo, Gitaï alcança
uma outra política, não a dos chefes de Estado em disputa, mas a
dos indivíduos que vivem e convivem naquele espaço.
Para isso, "Free Zone" reúne
numa picape três mulheres. Uma
americana, cujo casamento chegou ao fim, sua motorista israelense, que precisa recuperar o dinheiro que devem a seu marido, e
uma palestina, em fuga após ter
suas terras atacadas.
Desde o primeiro plano, a progressiva abertura com que Gitaï
trabalha a forma serve de chave
para o espectador, numa longa
cena sem cortes em close de Natalie Portman (Rebecca) diante da
janela da picape. Fora, o Muro das
Lamentações é visto apenas num
reflexo nos vidros do automóvel.
Dentro, mais ainda não visível,
encontra-se a motorista, Hanna.
A imagem se completa com o
som, em que uma canção folclórica canta uma ladainha feita de
causas e efeitos, espécie de ciclo
sem fim das opressões.
Antes de alcançar a zona franca,
o filme, seus personagens e o espectador são levados por uma travessia que faz as vezes de conhecimento. Gitaï adota um dispositivo
caro uma vez a Rossellini (em
"Viagem à Itália") e, depois, a Kiarostami (em particular em
"Dez"): o carro atravessa um espaço e dá a ver, de modo nunca
visto, uma paisagem, com suas diferenças de perspectivas, de sonoridades, de cores e de planos, de
tipos e de conflitos.
No lugar das imagens poluídas
pela violência, que a CNN e a Fox
News despejam diariamente à
nossa frente, um outro modo de
ver, alcançado pelo cinema, que
olha e contempla subjetivamente
em vez de apenas querer mostrar
com fúria objetiva.
Com sua extensa experiência
em documentários, Gitaï utiliza
aqui sua técnica para fazer a ficção
funcionar politicamente. Sem imposição retórica e com sobreposição exata de factual e de alegórico,
o diretor israelense atravessa ileso
todo o campo minado do Oriente
Médio para instalar o seu significado.
Free Zone
Produção: Bélgica/Israel, 2005
Direção: Amos Gitaï
Com: Natalie Portman, Hana Laszlo,
Hiam Abbass
Quando: a partir de hoje nos cines Reserva Cultural, Bombril e circuito
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