São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DRAUZIO VARELLA

Paulo Preto

A risada fácil e o ar de moleque provocador fizeram dele uma figura popular no hospital

PAULO ERA preto e assim se intitulava.
-Doutor Paulo Preto a seu dispor, foi como se apresentou sorridente para mim no Centro Cirúrgico do Hospital Sírio-Libanês, há mais de vinte anos.
Auxiliar de enfermagem de carreira, havia atribuído a si mesmo o nome e o título como corruptela irreverente ao doutor Paulo Branco, professor de cirurgia respeitado por todos seus ex-alunos no hospital.
O riso fácil, o ar de moleque provocador, o corintianismo fingidamente fanático, a informalidade indistinta no trato com superiores hierárquicos ou subalternos e o bom humor indestrutível ao cuidar dos pacientes fizeram dele o personagem mais popular do hospital, presença obrigatória nos eventos festivos; difícil passar uma semana sem que saísse para almoçar ou fosse ao estádio com algum médico.
Fazia uso descarado dessa proximidade para ajudar parentes, amigos e até estranhos a conseguir internações, cirurgias e consultas.
Uma vez, encontrei-o na saída do plantão, com calça de vinco, camisa florida e sapato de duas cores. "Sou um negro estiloso", justificou, em resposta a meu elogio. Disse ter ouvido falar de meu trabalho na Casa de Detenção e que seu sonho era voltar à cadeia que ele conhecera na infância por causa de um parente preso.
No presídio, passou a tarde num banquinho a meu lado, atento às consultas, sem pronunciar uma palavra. Na volta, descemos do metrô em Santa Cecília mortos de calor e entramos num bar. No primeiro gole, tomou dois terços do chope, suspirou e sorriu com gosto:
- Suave, doutor. Agora estou completamente feliz!
No dia seguinte, ele se ofereceu para ajudar no atendimento aos presos. Expliquei que era uma tarefa árdua pela qual ele nada receberia, que eu era médico e podia me dar ao luxo de trabalhar um dia por semana sem remuneração, mas não consegui demovê-lo.
Dos treze anos que trabalhei no Carandiru, oito foram em companhia de Paulo Preto. Ao terminar o exame físico dos doentes, eu ditava a prescrição, que ele anotava em letra clara para explicá-la ao destinatário com todos os detalhes, enquanto entrava o caso seguinte. Conseguimos tamanha eficiência que chegávamos a atender sessenta e até setenta pacientes em oito horas. Eu, às vezes, me impacientava com tanto movimento; ele, nunca.
Apesar da qualidade incomparável da pele negra e da ausência de um único cabelo branco subtraírem vinte anos de sua aparência, os presos o chamavam de Seu Paulo, com todo o respeito.
Com o tempo, adquiriu, no presídio, popularidade comparável à do hospital. Num ambiente em que os homens podem ser acusados de tudo, menos de ingênuos, sua falta de malícia ficou folclórica.
Numa segunda-feira, ao chegar na cadeia, nós nos deparamos com um aglomerado de carcereiros junto à sala de revista, parada obrigatória antes de entrar. Perguntei a seu Valdemar, funcionário antigo, a razão do alvoroço:
-Pegaram um colega com um quilo de cocaína.
Paulo Preto não pestanejou:
-Entrando ou saindo?
Seu Valdemar perdeu a paciência:
-Saindo, Paulo. Eles plantam coca lá dentro, refinam e mandam para a rua!
O comportamento reservado ao extremo no interior da cadeia contrastava com a extroversão que vinha à tona quando nos reuníamos para tomar cerveja com os funcionários, no final do expediente. Nessas ocasiões, disparava a falar, até alguém pedir:
-Socorro, o negão destravou. Pelo amor de Deus, doutor, segura o homem!
No tom de quem repreende uma criança, eu dizia que era falta de educação monopolizar a conversa. Ele me ouvia, de fato. Uma cerveja mais tarde, no entanto, começava tudo de novo.
Semana passada, recebi um telefonema às duas da manhã:
-Doutor, aqui é a irmã do Paulo Preto. Ele acabou de ter um ataque cardíaco fulminante. Que tristeza, cinqüenta anos!
Que tristeza mesmo; tenho passado o tempo todo com a imagem dele no pensamento. Contraditoriamente, quando converso com os amigos do hospital e da cadeia, só nos lembramos dos acontecimentos cômicos protagonizados por ele.
Na coluna de hoje, quero agradecer o privilégio de ter sido seu amigo durante tantos anos e prestar uma homenagem a Paulo Preto em nome de todas as pessoas doentes que ele ajudou.


Texto Anterior: Série: "The Strip" subestima o público-alvo
Próximo Texto: Saem últimos romances de Montalbán
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.