São Paulo, quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

O valor do vale-tudo


Não é a primeira vez que alguém grita "o rei está nu" no reino encantado da arte contemporânea


NINGUÉM GOSTA de ser enganado, é claro. No livro "A Grande Feira" (ed. Civilização Brasileira), o jornalista Luciano Trigo expressa com vivacidade aquilo que todo mundo sente com relação a uma área, a arte contemporânea, em que a enganação parece fazer parte das regras do jogo.
Exemplos escandalosos e insultantes existem de sobra, embora o livro de Luciano Trigo não os apresente em muita quantidade. Prefiro não lembrar o nome do artista que simplesmente despejou um carregamento de lixo na galeria de arte, dizendo que aquilo era sua exposição. Não é metáfora: lixo mesmo, transportado de um depósito ali perto.
Certo, trata-se de um "vale-tudo", como diz Luciano Trigo, que há uns dois anos comprou essa briga em artigos de jornal e no seu blog "Máquina de Escrever". Devia saber, imagino, o tipo de reações que sua disposição polêmica tende a despertar. Muita gente aplaude aliviada, enquanto o silêncio e o desprezo são de praxe nos setores especializados: o autor não entende nada, e, afinal, é só um jornalista...
Desconfio que a irritação e mesmo a raiva, presentes no estilo de "A Grande Feira", intensificam-se devido a essa espécie de "pecado original". Se o livro de Luciano Trigo acaba ficando excessivamente retórico e repetitivo, é porque, sem dúvida, ele tem o pressentimento de estar dando murros em ponta de faca.
Afinal, não é a primeira vez que alguém grita "o rei está nu" nesse reino encantado da arte contemporânea. Em "Cultura ou Lixo?", livro (mal) traduzido há tempos no Brasil, o crítico James Gardner batia na tecla de modo igualmente veemente, mas com uma maior quantidade de informações.
Infelizmente, "A Grande Feira" padece de muita generalização e redundância, e, quando Luciano Trigo afirma que nem todos os críticos foram comprados pelo sistema e que nem todos os artistas contemporâneos são empulhadores, o leitor naturalmente gostaria de saber quem são eles.
Muito diferente, na intenção e no estilo, é a série de perfis de artistas contemporâneos escrita por Calvin Tomkins, da revista "New Yorker". Duas das maiores implicâncias de Trigo -Damien Hirst e Jeff Koons- são tratados por Tomkins em textos minuciosos e simpáticos.
"As Vidas dos Artistas" (ed. Bei) assume o tom quase melífluo de quem não quer se indispor com o entrevistado, mas, sempre que necessário, deixa presente, nas entrelinhas, um laivo de desqualificação.
O benefício da dúvida, na crítica de arte, nem sempre é sinônimo de timidez. Todos conhecem o exemplo de Monteiro Lobato, arrasando em 1917 uma obra de Anita Malfatti em termos semelhantes, para não dizer idênticos, aos empregados agora por Luciano Trigo em "A Grande Feira".
"Ah, mas aquilo era diferente...". Era e não era. Sem dúvida, Anita Malfatti não se beneficiava, como Jeff Koons ou Damien Hirst, de leilões milionários. Sem dúvida, as contestações modernistas eram autênticas, e não dá para acreditar que sejam "contra o sistema" eventos de arte que reúnem milionários russos, publicitários europeus e artistas de Hollywood.
Só que sempre foi estreita a ligação entre a grande arte e os poderosos de uma época. Rubens era tão astuto quanto Andy Warhol no que se refere a circular nas altas rodas. Por outro lado, há diferenças significativas entre obras conceituais nas quais não há rigorosamente nada o que ver, e determinadas produções que, seja como for, produzem impacto visual e se revestem de inegável carga emblemática.
O tubarão de Damien Hirst pode não ser um Van Gogh, mas já ficou como um símbolo de nosso tempo. Não me peçam a explicação. De resto, eu também não saberia dizer por que a "Mona Lisa" tem mais aura do que, por exemplo, "As Fiandeiras" de Velázquez.
O tubarão vale aquela fortuna toda? Acho que não; em "The $ 12 Million Stuffed Shark" (Palgrave-Mc Millan), o colecionador e especialista em marketing Don Thompson analisa, de forma desencantada e objetiva, a lógica econômica, altamente heterodoxa, do mercado de arte contemporânea.
Termino com uma pergunta. Damien Hirst não é Van Gogh. Mas será que um quadro de Van Gogh vale mesmo US$ 82 milhões? Foi quanto pagaram pelo "Retrato do Dr. Gachet", 20 anos atrás. E nem havia tantos novos ricos naquela época.

coelhofsp@uol.com.br


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Música: Morre cantora folk canadense Kate McGarrigle
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.