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GASTRONOMIA
Memórias de uma eterna cozinheira
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
De vez em quando me falta o
ânimo para escrever sobre
comida -parece que dos anos 80
para cá já se falou tudo que havia
para falar, até o século 3000. E daí
escuto a voz da minha guru Elizabeth David, a inglesa-escritora-cozinheira que mudou o rumo da
comida européia com seu talento
e bom senso: "Não desista, alguma coisa nova pode aparecer!".
E o que de novo apareceu, para
eu comentar hoje, foi mais um livro de David (1913-1992), ainda
não traduzido, uma coletânea feita por Jill Norman, sua amiga. O
nome é "Is There a Nutmeg in the
House?". Será que tem uma noz-moscada em casa? E trata do quê?
Em 1985 ela já comenta e examina
as modas e modinhas da sociedade de consumo e a preocupação
com as personalidades glamourizadas da cozinha -os chefs profissionais e sua comida, e a emergência dos restaurantes como
substitutos do teatro, do concerto,
do circo, se quiserem.
Trata de comida, é claro, mas
não com a seriedade acadêmica
dos últimos livros. São artigos de
jornal e de revista que nos trazem
memórias, histórias, numa das
melhores prosas da Inglaterra.
Relembra o casarão de Sussex
em que cresceu com três irmãs e
de onde não tem saudades. A cozinha era ocupadíssima, empregados e gente que aparecia sem ser esperada, soltando uma comida abaixo da crítica. Muito carneiro, carneiro mesmo, não cordeiro, purê de batatas passado no espremedor todo empelotado, muito nabo, espinafre, beterraba, arroz-doce e tapioca. Vem desses tempos a idéia fixa de que a tapioca fora criada como castigo inventado para crianças levadas, mas, que injustamente, leva todos no
roldão de sua ruindade.
O que a deixa intrigada era a
mudança que ocorria entre a comida das crianças, completamente separada da dos adultos; a comida dos próprios adultos; e a hora do chá, quando era permitido
aos filhos se juntarem aos pais.
A mesa comprida, a mãe na cabeceira, comandando a chaleira
na espiriteira com água fervente, e
o bule de prata na frente. Uma leiteira, mas só para as visitas, porque a mãe jamais permitiria leite
ou açúcar no seu chá chinês. Só limão. Para comer, nada de espetacular, mas tudo muito gostoso.
Torradas finas com manteiga, bolinhos, geléia de maçã ou marmelo feita em casa, sanduíches de pepino e um bolo. Para visitas especiais, o bolo de laranja glaçado.
O que David não entende é como as mesmas mãos que assinavam diariamente aqueles legumes supercozidos assinavam também
o chá delicioso. Com certeza uma
cozinheira exercendo às mil maravilhas os dois pólos de sua personalidade. Nunca mais se esqueceu dos bolos que iam do maravilhoso de laranja ao inesquecível
de chocolate, passando pelo de
cerejas.
A vida da "nursery" não era somente tentar comer a comida
ruim que chegava lá em cima: tinha lá seus pontos altos. Proeza
da babá, que, muito escondida,
cozinhava na lareira do quarto
coisas proibidas.
Um deles, era um brigadeiro
bem puxa, que comiam da panela
em colheradas. Em certas épocas
do ano saíam para um bosque
perto de casa à cata de cogumelos.
E daí, com eles fresquinhos e orvalhados, a babá misturava-os a
um creme de leite grosso feito em
casa e salteava-os em frigideira,
ótimo para comer com torradas.
Em junho enchiam cestas de
amoras, framboesas, e quaisquer
outras "berries", que a moça punha na panela com um pouquinho de açúcar e deixava no fogo só até começar a soltar água e comiam o que chamavam de salada
quente, o que lhe parecia a essência do verão captada no vermelho.
Vai para a França, meninota, e
aí sim, ela aprende a comer, ou
melhor, ela come bem (ver "Comida Regional Francesa", Cia. das
Letras). Com 21 anos, E.D. está
morando sozinha em Londres e
descobre a Selfridges. Abre uma
conta e era só pegar o telefone e
encomendar frango assado, salmão defumado, manteiga, ovos,
creme de leite e café. Até que um
dia, a tal conta que abriu chegou e
foi preciso fechá-la rapidamente.
Com um bom presente em dinheiro, pela maioridade, compra,
"Of all things", gemem os conhecidos, uma enorme geladeira. Delineava-se por meio da compra a futura cozinheira. Não se esquece
da postura diante da comida da família francesa onde morou e começa a imitá-la em pequenas cozinhas mundo afora. No Cairo, durante a guerra, na Grécia, sempre em fogareiros de uma boca, mas já sabendo apreciar os ingredientes de cada lugar.
Vem daí o capítulo sobre a "minha cozinha ideal" que só foi ter
depois de velha, colhendo os frutos dos apertos, leituras, curiosidades e pesquisas.
É um livro bom, muitas receitas
(a de como fazer um caldo e pão
inglês, clássicas), resenhas antigas
que ainda valem e sua escrita
fluente, inteligente e objetiva.
IS THERE A NUTMEG IN THE HOUSE?.
Autoras: Elizabeth David e Jill Norman.
Editora: Viking Press. Preço: US$ 21 (318
págs.). Onde encontrar: www.amazon.com.
ninahort@uol.com.br
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