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CARLOS HEITOR CONY
O apóstolo por dentro e por fora
Gostava de exaltar a Verdade, a Fortaleza d'Alma e
a abominação de toda a iniqüidade -mas tinha fraquezas. Por
trás do ascetismo, apesar dos cilícios e dos sacrifícios, não conseguia domar a carne má e gozadora. Chamava-se Caldas.
Para minha madrasta, para
meu pai, para muita gente passava mesmo por um iluminado em
missão redentora. Viera ao mundo preparar a Revelação do Próximo Milênio, no qual, aliás, já
entramos. E tinha um exemplo a
citar, uma frase do evangelho, do
alcorão ou do Rig-Veda para
lembrar. Repugnavam-lhe as vaidades do mundo, o dinheiro, o
poder. À hora do jantar fazia considerações que lhe abriam o apetite na exata conta em que fazia o
pai perder o dele. Um nunca acabar de ameaças, unificadas numa
mensagem: os dias estavam contados, os Tempos haviam chegado!
O pai bebia devotadamente a
sapiência de Marcelino, mesmo
sem saber o que representavam os
Tempos que viriam segundo as
profecias. Chegara aos 60 anos ignorando essas verdades e elas ali
estavam, em cima dele. Não era
homem de pretensões. Queria que
os Tempos respeitassem sua saúde e sua aposentadoria. Solicitava
a intercessão do amigo. Caldas
prometia vagamente:
- É possível, é possível. Fique
certo, haverá justiça e eu estarei
lá.
O pai confiava não tanto na justiça, mas em Caldas, que estaria
lá.
E o iluminado amaldiçoava as
instituições, as religiões, as conquistas científicas, técnicas e estéticas:
- O que é eletricidade? Uma
brincadeira de mafuá. A Mona
Lisa? Uma prostituta de mau hálito. A bomba atômica? Uma
bombinha de são João diante da
Verdadeira Luz!
A Humanidade, manada de
porcos a refocilar na lama. Os homens, macacos cheios de cio, saciando instintos bestiais. As mulheres, serpentes prenhes de malícia e venenoso licor, cabras na
lascívia, éguas no consumir o fogo
dos sentidos. Odiava o dinheiro, o
prazer, o sono exagerado, a intemperança no comer e no beber,
odiava a glória:
- Vivemos em grades de carne.
Imagine um prisioneiro condenado a dois anos que transformem
sua cela em palácio. Libertado
das grades, o que lhe restará? Se,
em vez disso, aproveitar os dias de
sua prisão para aperfeiçoar-se na
sabedoria, poderá se refazer, buscando a liberdade. Em vez de estarmos preparados para os Tempos que se aproximam, procurando cultivar as forças do Espírito,
dissipamos nossa existência com
o nosso corpo, saciando-o de gozos, destinando-o ao conforto da
prisão provisória. Chega porém o
dia da libertação, e o que acontece? O corpo, outrora bem tratado,
bem servido e bem gozado, vai
apodrecer na mistura de verme e
lama. O espírito, que serviu àquele corpo como único ideal, supremo cuidado, imediata finalidade,
não estará preparado para a vida
que se inicia. Sofrerá então a pior
das dores, a mais funda das decepções! Viverá em trevas, em
agonias, em chamas de eterno padecimento!
O pai ouvia aflito, bebendo a
doutrina. O Caldas sabia coisas!
- Não podemos viver um só
dia na ignorância do nosso destino eterno. Ou a carne ou o espírito. Ou mantemos o espírito alerta,
senhor da carne, ou teremos a
carne como senhora do espírito. E
quando chegarem os Tempos receberemos o castigo ou a recompensa, sentaremos à direita ou à
esquerda do Cordeiro...
O pai interrompeu:
- Os da esquerda também têm
o direito de sentar?
Caldas gaguejava, não previra
a pergunta e honestamente não
sabia. Mas era coisa secundária,
sentados ou em pé, os da esquerda eram malditos e bastava.
- Ganharemos a treva e a desolação para sempre ou a luminosa glória por todos os séculos. Luz
diante do Eterno Trono ou aflição
na geena do fogo, a contemplarmos enojados a nossa carne, antiga rainha, a apodrecer nos esgotos, banqueteada por vermes asquerosos!
A madrasta avisava que o jantar estava na mesa. O pai se enfastiava diante da comida, provava um pouco de purê, uns bocados de pão, mastigando-os sem
prazer.
Caldas entrava no peixe assado
com molho de camarão, nas almôndegas de fígado e bacon ou
na galinha a molho pardo. Só não
comia carne de boi sangrando.
Dizia ser carne sacrificada, conservando em suas moléculas o desespero da hora em que fora sacrificada.
O pai gostava dos bifes malpassados. Caldas advertiu-o do perigo, aquela carne guardava a violência da morte, era um alimento
deletério. Mesmo tendo distante
noção do que seria "deletério", o
pai passou a comer bifes passados
que nem carvão, depois nem isso,
também queria estar preparado
para os Tempos.
Caldas nem sempre era trágico.
Vinha às vezes alegre, sem furores
ascéticos. Ao entrar em casa dava
um "salute" para todos, distribuía fartamente "aves", e era um
tal de ave para a madrasta, ave
para o pai, ave para todos, menos
para mim. Diminuía o entusiasmo e saudava-me com um severo
"pax". Não queria guerras comigo.
À hora da mesa, quando a cozinheira trazia novo prato, ele se alvoroçava, exclamava "benedicite!" e fazia gestos cabalísticos em
cima do empadão ou do risoto. E
depois comandava: "Manducamus in pace!". E comia, fartamente, em paz.
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