São Paulo, segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

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FORMA&ESPAÇO

Inventar os problemas

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

A figura social do arquiteto se enquadra mal em situações, como a atual, de forte segmentação profissional, de trabalho para nichos de mercado, pautados por juízos de gosto e ostentação. No fundo, tanto a ambigüidade das atribuições legais do arquiteto perante uma obra, quanto a dificuldade que um cidadão comum tem em entender o seu papel profissional -que parece situar-se em algum lugar indefinível entre o artista e o engenheiro-, são sinais desse desenquadramento, que não deixa de apontar uma crise da profissão.
Não pretendo desfiar, aqui, uma longa lamentação. Trata-se, antes, de precisar melhor o horizonte fundamental de atuação do arquiteto, definido de maneira decisiva com a modernidade. Isto é: com os significativos crescimentos da indústria e das cidades após a Primeira Guerra, que colocaram o problema arquitetônico em escala ampliada, urbana. Adequar a estrutura morfológica de burgos medievais às novas necessidades de uma sociedade de massas, e abrigar dignamente um enorme contingente de trabalhadores urbanos, tornaram-se problemas urgentes, à espera de respostas concretas. Respostas que se orientariam pela dimensão coletiva (padronização, produção em série), e que nem os desenhistas de fachadas -os neoclássicos de então-, nem os urbanistas utópicos, preocupados em conceber modelos de cidades ideais, eram capazes de dar.
Por aí se compreende que, de par com as opções estéticas de cada época, e que são a prerrogativa do trabalho artístico, há, a partir da modernidade, um forte componente ético na arquitetura, que retira a discussão do campo do gosto pessoal, transformando profundamente o estatuto da profissão. Como notou Giulio Carlo Argan, já não se pode mais pensar o arquiteto, a partir de então, na chave da dualidade entre o esteta e o construtor, pois ele tornou-se, antes de tudo, um urbanista, isto é, um intelectual, capaz de pensar a sociedade como um todo. Por isso é que a luta pela arquitetura moderna foi acima de tudo política, e não estilística. O que se colocou em causa foi menos um combate aos estilos acadêmicos, do que à lógica individualista da especulação imobiliária. Assim, o que deveria ser a resposta a uma conjuntura histórica desdobrou-se na invenção de uma nova vida comum, em que se postulou ser a cidade o verdadeiro habitat humano, e não a casa individual. Uma visão da coletividade em que a habitação é entendida não como o foco isolado de atenção, mas em sua articulação com as redes de transporte, escolas, parques, hospitais. Isto é: um elogio da metrópole, densa e verticalizada.
No entanto, quando se percebe que, ao contrário disso tudo, os arquitetos hoje não parecem ter instrumentos ou modelos claros de intervenção nas grandes cidades, e que o poder público, no caso de São Paulo, se limita a reformar calçadas, e reincide na prática excludente de expulsar populações carentes das regiões centrais para as periferias, é preciso admitir que esse papel social do arquiteto não se completou. O que não quer dizer que se deva responsabilizá-lo por não ter sido capaz de resolver tais problemas. Mas sim, apontar a sua atual incapacidade de inventar novos problemas, que permitam, de algum modo, reformular as demandas.


Arquiteto e mestre em história social pela USP, Guilherme Wisnik passa a escrever toda segunda-feira neste espaço


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