São Paulo, quarta-feira, 20 de março de 2002

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MARCELO COELHO

Paulo Coelho e o "fundamentalismo de mercado"

Acho muito bom quando alguém picha o "padrão Globo de qualidade", a voga dos livros esotéricos, a submissão da cultura aos mecanismos de mercado. O artigo de Walnice Nogueira Galvão, publicado no suplemento "Mais!" do último domingo, vai nesse sentido.
A professora e crítica literária traça um panorama pessimista da atual cultura brasileira, que a partir de 1968 vai cedendo cada vez mais às imposições do lucro, da produção em massa, do "facilitarismo", da degradação.
Um verdadeiro "fundamentalismo de mercado", diz Walnice, se faz sentir na área cultural. Não há como discordar desse diagnóstico.
O problema é que, lendo esse artigo, comecei a ficar em dúvida. Começo a achar que as críticas ao "fundamentalismo de mercado" correm o risco de se tornar fundamentalistas também. Não raro, o estilo apocalíptico se transforma em nostalgia.
"Uma certa concepção de alta cultura -e de alta literatura- que tínhamos até há pouco pereceu", afirma a autora. Arte e literatura, acrescenta, "hoje só existem na conjugação do pretérito". São frases tão veementes que fica até ridículo perguntar se não haveria algum exagero nelas.
Walnice reconhece, porém, "a democratização que se operou paralelamente ao lento esboroar-se da alta cultura." Continuo lendo e tenho uma surpresa. Essa democratização, "resultando na criação de um mercado de trabalho para os artistas e na transformação da obra de arte em mercadoria", teria começado com a invenção da imprensa.
Se a identificação da obra de arte com a mercadoria começou há séculos, por que terá perecido só agora a "concepção de alta cultura" que "tínhamos até há pouco"? A autora faz um salto: "A partir dos anos 60, o mercado foi ampliando seus domínios, até impor a hegemonia da indústria cultural, televisão à frente".
Não sei se o mercado era menos dominante no século 19: basta pensar nos grandes artistas -Baudelaire, Van Gogh- que morreram na miséria e na imensa quantidade de autores medíocres, hoje esquecidos, que obtiveram sucesso de público.
Artistas que ficaram pobres, artistas que ficaram ricos, autores que tiveram êxito, autores fracassados, autores de folhetim que fizeram grandes romances, poetas cultíssimos que nada fizeram que prestasse, há exemplos para tudo -e a maior ou menor dominância do mercado num determinado período não diz nada a respeito da qualidade estética de uma obra individual.
Pode-se e deve-se, é claro, julgar a qualidade de uma obra pelo que nela existe de puro comercialismo, de óbvia intenção de agradar ao público etc. Outra coisa é dizer que, a partir de um certo momento, toda a cultura se reveste dessas características.
Será que é isso o que Walnice Galvão está querendo dizer? Há trechos de seu artigo em que parece ser assim. No Brasil, depois de 1968, tudo piorou. "O horizonte artístico das cercanias de 1968, embora deitasse raízes na euforia nacional-desenvolvimentista do governo Kubitschek, mostra a última vez em que nossa cultura medrou com uma tal opulência e em todos os campos."
A tentativa de provar essa tese consome grande parte do artigo. Não é uma tarefa das mais fáceis. Sem dúvida, o teatro e a MPB tiveram momentos altos nas "cercanias de 68". Mas por que as artes plásticas, "enveredando por uma temática neofigurativa influenciada pela "pop art'", como diz Walnice, estariam em situação melhor do que a que viveu nos dias de hoje?
Na literatura, as coisas se complicam ainda mais. No período em que "medrava a opulência", tínhamos romances "que discutiam a tirania e como derrubá-la": Walnice lembra "Quarup", de Antonio Callado. Será plausível dizer que depois disso a mercantilização tomou conta da literatura?
É arriscado. Certamente, as sequelas de Rubem Fonseca ou os romances de Jô Soares são produtos para o mercado. Mas Walnice acaba citando Moacyr Scliar, Raduan Nassar, Valêncio Xavier, Ana Miranda e Ruy Castro, além de outros tantos, em seu panorama. Como submeter casos tão diferentes ao mesmo diagnóstico histórico?
É que pertencem ou ao ramo do "hipermimético" ou ao do"hipermediado": "a prosa tornou-se ou tão temerosa de fantasia que toma uma pretensa reprodução da realidade como seu objetivo" ou "elege a intertextualidade, a citação, a colagem (...) enfatizando tanto os meios que se arrisca a perder de vista os fins".
É estranho terminar dizendo que experimentalismos e intertextualidades atestam a dominância do mercado. Também é estranho sugerir que, de Antonio Callado a Milton Hatoum ou Raduan Nassar, há uma imensa queda de qualidade.
Por último, vem a chave de todo o diagnóstico sombrio a respeito da cultura brasileira: Paulo Coelho. Esse autor é exemplo da combinação da indústria cultural com a globalização que Walnice, com razão, critica.
Mas será que a existência de Paulo Coelho diz tudo sobre a situação cultural do Brasil e do mundo? Por que, aliás, incluí-lo no campo da literatura, quando de fato pertence ao mundo da auto-ajuda e do esoterismo?
Não sei se faz sentido concluir alguma coisa do fato de que ele vende muitíssimo. Dale Carnegie, Lobsang Rampa, Norman V. Peale e Carlos Castañeda também venderam muitíssimo em tempos passados. Pensar que isso diz alguma coisa a respeito da literatura hoje é, no fundo, tomar a lista de best-sellers como um retrato fidedigno de uma época e, com isso, cair no erro que se critica -o de tomar como cultura aquilo que o mercado diz que é.



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