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MARCELO COELHO
Paulo Coelho e o "fundamentalismo de mercado"
Acho muito bom quando
alguém picha o "padrão
Globo de qualidade", a voga dos
livros esotéricos, a submissão da
cultura aos mecanismos de mercado. O artigo de Walnice Nogueira Galvão, publicado no suplemento "Mais!" do último domingo, vai nesse sentido.
A professora e crítica literária
traça um panorama pessimista
da atual cultura brasileira, que a
partir de 1968 vai cedendo cada
vez mais às imposições do lucro,
da produção em massa, do "facilitarismo", da degradação.
Um verdadeiro "fundamentalismo de mercado", diz Walnice,
se faz sentir na área cultural. Não
há como discordar desse diagnóstico.
O problema é que, lendo esse artigo, comecei a ficar em dúvida.
Começo a achar que as críticas ao
"fundamentalismo de mercado"
correm o risco de se tornar fundamentalistas também. Não raro, o
estilo apocalíptico se transforma
em nostalgia.
"Uma certa concepção de alta
cultura -e de alta literatura-
que tínhamos até há pouco pereceu", afirma a autora. Arte e literatura, acrescenta, "hoje só existem na conjugação do pretérito".
São frases tão veementes que fica
até ridículo perguntar se não haveria algum exagero nelas.
Walnice reconhece, porém, "a
democratização que se operou
paralelamente ao lento esboroar-se da alta cultura." Continuo lendo e tenho uma surpresa. Essa democratização, "resultando na
criação de um mercado de trabalho para os artistas e na transformação da obra de arte em mercadoria", teria começado com a invenção da imprensa.
Se a identificação da obra de arte com a mercadoria começou há
séculos, por que terá perecido só
agora a "concepção de alta cultura" que "tínhamos até há pouco"?
A autora faz um salto: "A partir
dos anos 60, o mercado foi ampliando seus domínios, até impor
a hegemonia da indústria cultural, televisão à frente".
Não sei se o mercado era menos
dominante no século 19: basta
pensar nos grandes artistas
-Baudelaire, Van Gogh- que
morreram na miséria e na imensa quantidade de autores medíocres, hoje esquecidos, que obtiveram sucesso de público.
Artistas que ficaram pobres, artistas que ficaram ricos, autores
que tiveram êxito, autores fracassados, autores de folhetim que fizeram grandes romances, poetas
cultíssimos que nada fizeram que
prestasse, há exemplos para tudo
-e a maior ou menor dominância do mercado num determinado período não diz nada a respeito da qualidade estética de uma
obra individual.
Pode-se e deve-se, é claro, julgar
a qualidade de uma obra pelo
que nela existe de puro comercialismo, de óbvia intenção de agradar ao público etc. Outra coisa é
dizer que, a partir de um certo
momento, toda a cultura se reveste dessas características.
Será que é isso o que Walnice
Galvão está querendo dizer? Há
trechos de seu artigo em que parece ser assim. No Brasil, depois de
1968, tudo piorou. "O horizonte
artístico das cercanias de 1968,
embora deitasse raízes na euforia
nacional-desenvolvimentista do
governo Kubitschek, mostra a última vez em que nossa cultura
medrou com uma tal opulência e
em todos os campos."
A tentativa de provar essa tese
consome grande parte do artigo.
Não é uma tarefa das mais fáceis.
Sem dúvida, o teatro e a MPB tiveram momentos altos nas "cercanias de 68". Mas por que as artes plásticas, "enveredando por
uma temática neofigurativa influenciada pela "pop art'", como
diz Walnice, estariam em situação melhor do que a que viveu
nos dias de hoje?
Na literatura, as coisas se complicam ainda mais. No período
em que "medrava a opulência",
tínhamos romances "que discutiam a tirania e como derrubá-la": Walnice lembra "Quarup",
de Antonio Callado. Será plausível dizer que depois disso a mercantilização tomou conta da literatura?
É arriscado. Certamente, as sequelas de Rubem Fonseca ou os
romances de Jô Soares são produtos para o mercado. Mas Walnice
acaba citando Moacyr Scliar, Raduan Nassar, Valêncio Xavier,
Ana Miranda e Ruy Castro, além
de outros tantos, em seu panorama. Como submeter casos tão diferentes ao mesmo diagnóstico
histórico?
É que pertencem ou ao ramo do
"hipermimético" ou ao do"hipermediado": "a prosa tornou-se ou
tão temerosa de fantasia que toma uma pretensa reprodução da
realidade como seu objetivo" ou
"elege a intertextualidade, a citação, a colagem (...) enfatizando
tanto os meios que se arrisca a
perder de vista os fins".
É estranho terminar dizendo
que experimentalismos e intertextualidades atestam a dominância do mercado. Também é
estranho sugerir que, de Antonio
Callado a Milton Hatoum ou Raduan Nassar, há uma imensa
queda de qualidade.
Por último, vem a chave de todo
o diagnóstico sombrio a respeito
da cultura brasileira: Paulo Coelho. Esse autor é exemplo da combinação da indústria cultural
com a globalização que Walnice,
com razão, critica.
Mas será que a existência de
Paulo Coelho diz tudo sobre a situação cultural do Brasil e do
mundo? Por que, aliás, incluí-lo
no campo da literatura, quando
de fato pertence ao mundo da auto-ajuda e do esoterismo?
Não sei se faz sentido concluir
alguma coisa do fato de que ele
vende muitíssimo. Dale Carnegie,
Lobsang Rampa, Norman V. Peale e Carlos Castañeda também
venderam muitíssimo em tempos
passados. Pensar que isso diz alguma coisa a respeito da literatura hoje é, no fundo, tomar a lista
de best-sellers como um retrato fidedigno de uma época e, com isso,
cair no erro que se critica -o de
tomar como cultura aquilo que o
mercado diz que é.
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