São Paulo, sábado, 20 de março de 2004

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DRAUZIO VARELLA

Novos neurônios

Neurônios são células especiais; sem eles, nossos cérebros não passariam de uma gelatina amorfa e inútil.
Na segunda metade do século 20, os neurologistas nos fizeram acreditar em duas idéias que se transformaram em dogmas centrais da neurociência:
1) A partir dos primeiros anos de vida, perdemos milhares de neurônios, cada dia que passa.
2) No cérebro adulto, não há nascimento de novos neurônios.
A aceitação desses dogmas tem implicações graves: se a perda é inevitável e não somos capazes de repor neurônios perdidos, ao envelhecer estaremos fadados à deterioração intelectual e às dificuldades motoras. Isso talvez justifique as deficiências cognitivas e motoras que se instalam progressivamente nos portadores da doença de Alzheimer e de outras demências características dos mais velhos, mas não explica o caso dos idosos lúcidos e criativos.
A idéia de que os neurônios morrem coletivamente todos os dias, caiu por terra nos anos 1990. A revisão criteriosa dos trabalhos que serviram de suporte a ela deixou claro que os métodos utilizados para contar neurônios no tecido cerebral naquele tempo eram antiquados e considerados inaceitáveis pela neurociência atual. Na verdade, esse primeiro dogma havia sido enunciado a partir de evidências empíricas surpreendentemente frágeis, que nunca foram comprovadas com o emprego de metodologias mais precisas.
O segundo dogma foi contestado pela primeira vez em 1965, quando pesquisadores do MIT trataram ratos com uma substância que deixa coloridas as células que se encontram em divisão e detectaram a presença delas no cérebro. Infelizmente, com as técnicas então disponíveis, os autores não puderam distinguir se essas células eram realmente neurônios ou outras células do sistema nervoso.
Vinte anos mais tarde, pesquisadores da Universidade Rockfeller encontraram evidências do aparecimento de novos neurônios (neurogênese) num centro cerebral de canários fundamental para o canto e também no hipocampo, área importante para a memória.
Pesquisas posteriores demonstraram que novos neurônios são formados continuamente nesse centro vocal, mas surgem em maior número nas temporadas de acasalamento, quando os canários costumam acrescentar novas melodias ao canto. Fora dessa época, quando cantam menos e as canções se tornam mais monótonas, as dimensões da região ocupada pelo centro vocal diminuem de tamanho, para aumentar outra vez, quando os machos voltarem a se empenhar na conquista das fêmeas.
Em seguida, cientistas do Instituto Salk, na Califórnia, verificaram a ocorrência de neurogênese no hipocampo de ratos adultos e provaram que os novos neurônios eram formados a partir de células-tronco (células toti-potentes capazes de se diferenciar em qualquer outra) existentes no tecido nervoso.
Em estudos subseqüentes, os mesmos cientistas demonstraram que ratos colocados em ambientes com mais estímulos visuais, olfativos e sonoros duplicam o tempo de sobrevivência desses novos neurônios no hipocampo. Nos animais mais velhos, esse efeito é ainda mais evidente: a longevidade dos neurônios chega a triplicar.
Então, em 1992, pesquisadores canadenses encontraram sinais claros do nascimento de novos neurônios numa região cerebral do camundongo conhecida como bulbo olfatório, área essencial para integração dos estímulos que conduzem ao reconhecimento dos diferentes tipos de odor. A existência de neurogênese constante nessa região talvez explique a enorme capacidade de discriminação olfativa dos ratos --muito superior à dos cachorros.
Como essa capacidade discriminatória é essencial não só para a localização e a escolha de alimentos, mas também para o reconhecimento e a nutrição dos filhotes --uma vez que lesões no bulbo olfatório da mãe provocam abandono dos recém-nascidos à própria sorte--, o grupo canadense resolveu estudar se a gravidez induz a formação de novos neurônios nessa área cerebral dos ratos.
Acompanhando as fêmeas durante os 21 dias de duração média da gestação, foi possível verificar já no sétimo dia um aumento de 65% no número de neurônios presentes no bulbo olfatório. Os autores também detectaram aumento da neurogênese logo após o parto e mesmo depois de relações sexuais das fêmeas com machos estéreis.
O grupo identificou a prolactina, hormônio produzido em quantidades maiores durante a gravidez e imediatamente após a atividade sexual, como o fator capaz de disparar a formação desses neurônios recém-formados.
Esses achados, combinados com a descoberta publicada no ano passado de que medicamentos antidepressivos provocam nascimento de novos neurônios no hipocampo de mulheres e homens, não apenas derrubaram mais um dogma da neurologia; também tornaram o campo da neurogênese uma das áreas mais férteis da neurociência.
Neurônios podem nascer ou morrer de acordo com os estímulos a que são submetidos. Condições como estresse, depressão e viver num ambiente pobre em estímulos provocam morte de neurônios e atrofia de áreas cerebrais como o hipocampo, essencial para memória e aprendizado. Ao contrário, gravidez, medicação antidepressiva, prática de exercícios físicos, esforçar-se para desenvolver atividade intelectual desafiadora num ambiente pleno de estímulos e ser capaz de manter vida sexual ativa podem criar novos neurônios.
Nada mal para os que viviam conformados com a atrofia inexorável do cérebro.


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