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CONTARDO CALLIGARIS
O moralizador
Moralizador é quem impõe ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar
ELIOT SPITZER era governador do Estado de Nova York
até sua resignação na semana passada.
Sua fortuna política e sua popularidade eram ligadas à sua atuação
prévia como procurador agressivo
e inflexível contra os crimes financeiros e contra as redes de prostituição e seus clientes.
Ora, descobriu-se que ele era freguês de uma rede de prostituição
de luxo e que também recorria a artimanhas financeiras para que
seus pagamentos -substanciais:
US$ 80 mil (R$ 140 mil)- não fossem identificados.
Esse fato de crônica (no fundo,
trivial) foi para a primeira página
dos jornais do mundo inteiro
-aparentemente, pela surpresa
que causou: quem podia imaginar
tamanha hipocrisia? Esse "espanto" geral foi, para mim, a verdadeira notícia da semana.
Começou no dia em que Spitzer
deu sua primeira declaração pública, reconhecendo os fatos e a culpa,
ao lado de sua mulher, impávida.
No programa "360", da CNN, o âncora, Anderson Cooper, convocou
dois comentaristas. Um deles, uma
mulher, psicóloga ou psiquiatra,
ofereceu imediatamente uma explicação correta e óbvia. Ela disse,
mais ou menos: é muito freqüente
que um moralizador raivoso castigue nos outros tendências e impulsos que são os seus e que ele não
consegue dominar. Cooper (que já
passeou pelos piores cenários de
guerra e catástrofes naturais) quase levou um susto e cortou rapidamente, acrescentando que essas
eram, "claramente", suposições,
hipóteses etc. Não é curioso?
Em regra, prefiro as idéias que
são propostas, justamente, como
hipóteses ou sugestões que cada
um pode testar no seu foro íntimo.
Mas, hoje, considerar a dita declaração da especialista como uma suposição parece ser uma hipocrisia
pior (e mais perigosa) do que a de
Spitzer.
Afinal, depois de um bom século
de psicologia e psiquiatria dinâmicas, estamos certos disto: o moralizador e o homem moral são figuras
diferentes, se não opostas.
1) O homem moral se impõe padrões de conduta e tenta respeitá-los;
2) O moralizador quer impor ferozmente aos outros os padrões
que ele não consegue respeitar.
Na mesma primeira declaração,
Spitzer confessou, contrito, que ele
não conseguira observar seus próprios padrões morais. Tudo bem:
qualquer homem moral poderia
confessar o mesmo. Mas ele acrescentou imediatamente que, a bem
da verdade, esses eram os padrões
morais de quem quer que seja.
Aqui está o problema: o padrão
moral que ele se impõe, mas não
consegue respeitar, é considerado
por ele como um padrão que deveria valer para todos. Com que finalidade? Simples: uma vez estabelecido seu padrão como universal,
ele pode, como promotor ou governador, impô-lo aos outros, ou seja,
ele pode compensar suas próprias
falhas com o rigor de suas exigências para com os outros.
Quem coloca ruidosamente a caça aos marajás no centro de sua vida está lidando (mal) com sua própria vontade de colocar a mão no
pote de marmelada. Quem esbraveja raivosamente contra "veados" e
travestis está lidando (mal) com
suas fantasias homossexuais. Quem
quer apedrejar adúlteros e adúlteras
está lidando (mal) com seu desejo de
pular a cerca ou (pior) com seu sadismo em relação a seu parceiro ou
sua parceira.
O exemplo da adúltera, aliás, serve
para lembrar que a psicologia dinâmica, no caso, confirma um legado
da mensagem cristã: o apedrejador
sempre quer apedrejar sua própria
tentação ou sua culpa.
A distinção entre homem moral e
moralizador tem alguns corolários
relevantes. Primeiro, o moralizador
é um homem moral falido: se soubesse respeitar o padrão moral que
ele se impõe, ele não precisaria punir suas imperfeições nos outros.
Segundo, é possível e compreensível
que um homem moral tenha um espírito missionário: ele pode agir para levar os outros a adotar um padrão parecido com o seu. Mas a imposição forçada de um padrão moral
não é nunca o ato de um homem
moral, é sempre o ato de um moralizador.
Em geral, as sociedades em que as
normas morais ganham força de lei
(os Estados confessionais, por
exemplo) não são regradas por uma
moral comum, nem pelas aspirações
de poucos e escolhidos homens
exemplares, mas por moralizadores
que tentam remir suas próprias falhas morais pela brutalidade do controle que eles exercem sobre os outros. A pior barbárie é isto: um mundo em que todos pagam pelos pecados de hipócritas que não se agüentam.
ccalligari@uol.com.br
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