São Paulo, sábado, 20 de março de 2010

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LIVROS

Crítica / "A Arte e a Maneira de Abordar Seu Chefe para Pedir um Aumento"

Experimentalismo de Perec propõe jogo sem fim ao leitor

Escritor francês satiriza sociedade industrial em livro de linguagem inovadora

MARCELINO FREIRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando, em 1985, foi à TV a minissérie "Grande Sertão: Veredas", houve uma correria às livrarias para comprar o romance de Guimarães Rosa. No dia seguinte, a correria foi para devolver o livro.
Lendas à parte, fiquei matutando sobre isto enquanto lia "A Arte e a Maneira de Abordar Seu Chefe para Pedir um Aumento", do francês Georges Perec. Explico: pelo apelo do título. Uma armadilha.
Imagino igual correria. O empregado aproveitando a folga para ir comprar "seu manual". Ave nossa! "De hoje não passa", ele dirá, decidido. "Enfrentarei o meu chefe. Finalmente, mostrarei para ele onde o calo aperta." E pensará: "Qual a melhor estratégia? O que tem a nos ensinar esse tal de Georges Perec? Nunca ouvi falar".
Perec, nascido em 1936 e morto aos 46 anos, é autor, entre outros, de clássicos provocativos em prosa experimentalista, como "A Vida: Modo de Usar", considerado sua obra-prima e igualmente publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
O que parece um livro de conselhos, cheirando a Paulo Coelho, não se engane. É alta literatura. Mais atrapalha que ajuda. Quem disse que a boa literatura tem essa obrigação? De salvar ninguém? Não confundir palavra com igreja, amém!

Antiajuda
Para o desavisado leitor, não há consolo. Nem facilidades. O trabalho é duro. A leitura carece de um esforço -o texto todo é sem pontuação, não reclame.
Siga o ritmo, entre no centro nervoso da história (se há alguma) que começa (se há começo) na hora em que o empregado decide ir à sala do chefe para pedir uma melhoria salarial.
Aquele momento em que a gente puxa o fôlego, ensaia os argumentos etc. e tal. A linguagem roda, roda e parece não sair do lugar. Como quem treina para pedir em namoro a pessoa amada. Ou sei lá. Quando a gente oscila diante da vida, vacila e pestaneja. A literatura de Perec é um jogo sem fim. Uma peleja.
Eis um trecho: "Admitamos que ele não esteja então você vai ficar à espreita aguardando sua volta ou sua chegada andando de um lado para o outro no corredor [...] ou o melhor que você tem a fazer é dar um giro pelas diversas seções cujo conjunto constitui a totalidade ou parte da organização que o emprega".
Mais adiante, as frases vão ganhando outras companhias, filhas de um mesmo sistema corporativo, de uma mesma agonia: da organização que o paga / o usa / o explora.
As palavras dentro de uma máquina. Digamos: vemos o processo se processando. Os personagens, meio que parados, e tudo em volta deles se movimentando. Vai ou não vai? É agora ou nunca?

Sempre agora e nunca
Na literatura de Perec é sempre agora. E é sempre nunca. Ele trabalha no esgotamento. No limite. Brinca. Ri da nossa tontice, mesmice.
Destaque para a competente tradução de Bernardo Carvalho. Embora, aqui e ali (como no uso burocrático de alguns advérbios e do chato "por conseguinte"), fosse melhor tirar um pouco a gravata. E relaxar.
Sim, amigo leitor, melhor relaxar. Não vai ser dinheiro perdido comprar este livrinho, nonada, pode apostar. Você será compensado do prejuízo. Isso se o aumento chegar.


MARCELINO FREIRE é autor, entre outros, de "Contos Negreiros" (Record).

A ARTE E A MANEIRA DE ABORDAR SEU CHEFE PARA PEDIR UM AUMENTO
Autor:
Georges Perec
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Bernardo Carvalho
Quanto: R$ 29,50 (88 págs.)
Avaliação: bom



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