São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 2000


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CONTARDO CALLIGARIS

Elite também é excluída da história do Brasil

É a semana do aniversário dos 500 anos do Brasil.
Cabe pensar como o Brasil consegue (ou não) ser uma nação. Será que os brasileiros compartilham o sentimento de uma comunidade de destino? Será que eles têm a impressão de navegar no mesmo barco?
O aniversário de uma comunidade não é diferente de qualquer outro. É dia de balanço, dia de contar os fracassos. Os fracassos de uma comunidade são sobretudo as exclusões injustas e nefastas que ela produziu e produz.
Aliás, o aniversário está sendo a ocasião para que se manifestem os que se vêem excluídos da história do país. É bom que índios e os sem-terra convirjam para Bahia. Prova que o Brasil ainda existe para eles, o suficiente para que faça sentido bater na porta e fincar o pé.
De costume, quando falamos de exclusão, pensamos nos milhões de brasileiros miseráveis, degredados em sua própria pátria, numa espécie de exílio interno.
Mas há outros excluídos, nos quais talvez seja mais difícil pensar. Eles são membros das elites e, em geral, elite e exclusão não se conjugam muito bem. As elites são acusadas eventualmente de se auto-excluir, por se reconhecerem na comunidade globalizada e abstrata do dinheiro, mais do que na complexidade capenga do país.
Ora, é frequente encontrar jovens rebentos das elites brasileiras que estudam nos EUA. Alguns (mais do que se imagina) contam a história de como, em um momento de sua primeira infância, vieram morar nos EUA.
Ingenuamente, pode-se perguntar o porquê. A resposta não é encontrada facilmente. A família não abrira nenhuma sucursal de seu negócio nos EUA. Nenhuma razão clara que justifique a mudança. Por um momento, parece que foi mais uma do Mickey Mouse seduzindo criancinhas. Ou então as elites estão se sentindo tão estrangeiras no Brasil que preferiram criar filhos alhures do que no Rio, em São Paulo ou em outra capital. Teriam escolhido, ao que parece, uma tribo reunida por similaridade de contas bancárias e deixado sem muito remorso os prazeres e deveres de compartilhar a cultura e a história de um povo mais diverso.
Foram anos de babás dedicadas e pais pendulários entre São Paulo, Rio e alguma cidade americana, de preferência dotada de um subúrbio luxuoso. Outras vezes a família inteira reinventou uma vida nos EUA. Outras ainda abriram distâncias dolorosas entre os que se americanizaram e os que nunca se adaptaram. Mas enfim por que tudo isso?
A resposta é lenta, circunspecta, atrás e por meio de pequenas mentiras e omissões, como se houvesse alguma vergonha de família. Mas não é uma questão de vergonha: para estes jovens, o silêncio é um antigo costume, uma estratégia elaborada durante anos. Eles internalizaram a regra: "Não dizer quem são, onde estão, para onde vão".
São jovens que passaram a infância nos Estados Unidos para fugir do risco da criminalidade urbana. Mais exatamente, são as crianças da indústria do sequestro.
Em geral, permaneceram nos EUA até a adolescência, voltando para o Brasil apenas para as férias e nem sempre. Ficaram com uma dupla nacionalidade cultural e com uma perfeita incompreensão de sua própria infância. Difícil para elas evitar uma desconfiança do mundo e sobretudo daquele fragmento de mundo que se chama Brasil, onde cada encruzilhada era supostamente uma armadilha.
Difícil também evitar uma ambivalência quanto ao legado dos pais. Pois a herança, por mais que não fosse só estupidamente financeira, parecia acarretar uma maldição.
Cada criança e cada adulto que foi uma daquelas crianças lida com o passado de maneira diferente. Em comum só fica a propensão ao silêncio, pois as paredes têm ouvidos.
Mas, atrás das maneiras singulares pelas quais eles organizam sua memória e seu sofrimento, os fatos e sua significação restam incontornáveis.
Foram infâncias onde o porto seguro eram só a família mais restrita e a comunidade dos outros ameaçados pela mesma violência -um grupo que compartilhava não uma cultura, mas um medo.
São crianças que viveram se escondendo de uma inveja desregrada, violenta, que a comunidade nacional não soube conter. O funcionamento do mundo moderno lhes apareceu organizado pela violência real.
Estes jovens poderiam se transformar em monstros predatórios. Justificadamente. Diriam: "Não sou daqui mesmo, o que tenho a ver com uma pátria que não soube me proteger? Com um povo que me persegue?".
De fato, não é o que acontece. Para estes brasileiros que perderam a infância -como outros, menos ditosos, a perdem nas ruas de nossas cidades- sobra uma tristeza, como um luto não resolvido, em que o exílio foi o preço do privilégio.
Não sei se é muito diferente para os que não viajam e passam a infância contemplando o mundo através de vidros blindados e por cima dos ombros de seguranças armados. Este também é um exílio.
Se uma elite nacional pode fazer falta no Brasil, a culpa talvez não esteja toda com o Mickey Mouse, nem com o gosto estrangeirista das elites.


Email: ccalligari@uol.com.br



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