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Com a boca no trombone
Pianista Arnaldo Cohen assume cargo vitalício nos EUA, critica Brasil e afirma sofrer boicote
RAFAEL CARIELLO
ENVIADO ESPECIAL À FILADÉLFIA
Arnaldo Cohen, 55, mandou
buscar o piano que tem no Rio.
"O Brasil é inviável até para os
meus netos", diz o pianista, que,
após mais de 20 anos em Londres,
está de mudança para os EUA, em
busca "de liberdade".
Essa liberdade, afirma Cohen,
"é exatamente o oposto do que
acontece no Brasil", para onde ele
pensou em voltar. Desistiu, entre
outras razões, por causa do que
chama de "vírus ACM@Brasil, sigla que quer dizer Anomalia
Comportamental quase Medieval. Ele se propaga em muitos setores da sociedade, onde um simples "eu não gosto dele" pode ser o
suficiente para alienar e prejudicar bons profissionais".
Ele se diz vítima do vírus, já que
está sendo boicotado, afirma, pela
Orquestra Sinfônica Brasileira.
Com a carreira em ascensão
-toca neste ano com três importantes orquestras norte-americanas: Cleveland, Los Angeles e Filadélfia-, foi convidado pela Universidade de Indiana para ser
professor vitalício, em setembro.
"A esse tipo de professor é dada a
segurança de que ninguém poderá mandá-lo embora, para garantir a independência de idéias."
Parte dessa entrevista foi feita
após seu concerto com a Orquestra da Filadélfia, no último dia 3.
O jornal local, "Philadelphia Inquirer", elogiou de maneira entusiasmada a "sutileza" do pianista
e disse que sua música soava "como uma mensagem divina". A
conversa foi completada por e-mail, na semana seguinte.
Folha - A liberdade de interpretação está diminuindo?
Arnaldo Cohen - O ser humano
tem um problema sério com sua
finitude e tenta se enganar. Vamos fingir, inventar um processo
em que eu possa tocar perfeitamente, mesmo que eu não seja capaz. Esse é o CD -uma mentira.
Com todas as edições, com as exigências do mercado, ele precisa
que não haja nenhum "erro" ou
nota esbarrada. Antigamente era
impossível, você tinha uma chance só para gravar. O público compra um CD perfeito, e a pergunta
que fica no ar é: você é capaz de fazer aquilo ao vivo? Não -assino
embaixo. Duvido. Ninguém. Pode acontecer uma vez em mil. Por
exemplo, os estudos de Chopin
-soube que o Nelson [Freire]
gravou. Fantástico. Ele toca isso
em público? Se tocar, vou lá assistir. Ele é capaz de fazer ao vivo o
que faz no disco? Eu garanto: não.
Nem ele, nem eu, nem ninguém.
Logo, tem alguma coisa que não
bate. Em composição, chegou a
haver liberdade quase total e aumento dessa expressão individual. Mas hoje você tem menos liberdade na interpretação dos
clássicos do que tinha no final do
século 19. Em nome da fidelidade
ao compositor, você acaba tendo
uma atitude interpretativa oposta
à dos próprios artistas da época.
Folha - Os intérpretes deveriam
ter mais liberdade?
Cohen - Quem tem necessidade
de gritar, a ele deveria ser dada essa liberdade. É muito mais difícil
tocar um concerto de Mozart hoje. Você tem de encontrar maneiras de, dentro das imposições do
status quo, somente levantando
uma sobrancelha esquerda, fazer
algo semelhante a um grito -e as
pessoas têm de sentir isso.
Folha - O sr. acha que a liberdade
de criação é maior nos EUA?
Cohen - Essa é uma das razões
que têm a ver com a minha mudança. Nos últimos 15 anos, 70%
das sociedades de concerto italianas acabaram. O mesmo aconteceu na Inglaterra e na Alemanha.
O Estado hoje não consegue subsidiá-las. A solução é a comunidade, são as doações, que é o que
sempre aconteceu nos EUA. A
Europa não tem tradição de mecenato, pessoal ou corporativo.
Bem ou mal, a arte hoje é um produto de consumo, e você precisa
de dinheiro, marketing, qualidade etc. Vejo a Europa com problemas sérios no futuro. Posso ousar
muito mais aqui. Eles me deram o
cargo de professor vitalício na
Universidade de Indiana. O significado disso é independência acadêmica em termos de idéias e de
filosofia. Se eu resolver amanhã
que descobri um modo de tocar
com o cotovelo, ninguém pode
me mandar embora. Esta é a função do cargo: liberdade intelectual, de expressão. É por isso que
os EUA são o que são. Para mim,
isso não tem preço. Já tinha recebido propostas para tocar aqui.
Mas vivia criticando os EUA, não
gostava, fui assaltado aqui... Fui
comunista, participei do movimento estudantil, então os EUA
eram tudo o que não queria.
Folha - O sr. chegou a pensar em
voltar para o Brasil?
Cohen - Pensei, seriamente. Devo às dificuldades brasileiras essa
chance [de morar nos EUA]. Até
dois anos atrás, meu ideal era
concentrar meus concertos nos
EUA, mas, como adoro meu país,
queria estabelecer uma residência
no Rio. Minha idéia era ter uma
base no Brasil, tocando no exterior. O problema da segurança foi
o primeiro ponto de interrogação
que me impediu de tomar a atitude precipitada de me mudar para
o Rio. Mas, além disso, esse cargo
vitalício é exatamente o oposto do
que acontece no nosso país. Essa
liberdade na realidade não existe
no Brasil, por causa do vírus.
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