São Paulo, domingo, 20 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA WALTER SALLES

Festivais de cinema são território de resistência

Para o diretor de "Central do Brasil", eventos como Cannes são relevantes "num mundo em que cada vez menos filmes ocupam um número cada vez maior de salas"

PEDRO BUTCHER
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

O aniversário de 60 anos do Festival de Cannes será comemorado hoje, 20 de maio, com a exibição de "Chacun Son Cinéma" ("O Cinema de Cada Um"), reunião de 33 curtas assinados por uma espécie de "dreamteam" do cinema mundial. Walter Salles foi o único brasileiro escolhido para participar do time, ao lado de nomes como Wong Kar-wai, Ken Loach e Wim Wenders.
Entusiasmado com o convite de Gilles Jacob (presidente do festival), Salles acabou realizando dois curtas radicalmente diferentes. No primeiro, "A 8.944 Quilômetros de Cannes", feito em colaboração com George Moura, ele volta a filmar uma embolada de Castanha e Caju, personagens centrais do curta antiglobalização "Vamos Afundar o Titanic", co-realizado com Daniela Thomas e também exibido em Cannes, em 2002. Agora, Castanha e Caju voltam à porta de um velho cinema da cidade de Miguel Pereira, no interior do Rio, para fazer uma hilária improvisação, versando sobre Cannes.
No segundo curta, "Carta a V.", Salles empunha uma câmera super-8 para filmar o filho de seis meses, Vicente, fazendo uma reflexão pessoal e lírica sobre a importância do cinema e o futuro da imagem. Narrado pelo cineasta, o curta traz imagens de "Paris, Texas", de Wim Wenders, "O Homem de Aran", de Robert Flaherty, "Limite", de Mario Peixoto, e "O Grande Ditador", de Chaplin -este, a escolha de Salles para apresentar o cinema ao filho.
Feito em um impulso, "Carta à V." foi enviado para Jacob mais tarde, com medo de que o primeiro, com seu tom debochado, não se encaixasse no longa. No fim das contas, os dois foram selecionados: "A 8.944 Quilômetros de Cannes" foi incluído no longa, enquanto "Carta a V.", provavelmente, será exibido antes de um filme da competição oficial.
Mas a presença de Salles em Cannes será mais ampla. Às voltas com a preparação do próximo longa de ficção, "Linha de Passe" (que deve começar a filmar mês que vem, com Daniela Thomas), e com a montagem do documentário
"Em busca de "On the Road'" (sobre a obra de Jack Kerouack, que ele possivelmente adaptará para o cinema), Salles interrompeu a agenda no Brasil para assumir uma série de responsabilidades no festival.
Na próxima terça, ele participa do lançamento da World Cinema Foundation, criada por Martin Scorsese para bancar a preservação de obras-primas do cinema mundial. Salles foi chamado por Scorsese para ser o representante da fundação na América Latina.
Na quarta, o cineasta apresenta na mostra Cannes Classics a versão restaurada de "Limite", um dos três filmes escolhidos para o lançamento oficial da fundação. A produtora de Salles, Videofilmes, abriga o Arquivo Mario Peixoto, de onde o especialista Saulo Pereira de Mello comandou o longo processo de recuperação do único filme do cineasta.
Na entrevista a seguir, Salles fala da participação em Cannes e comenta o andamento do projeto de "On the Road", adaptação do livro de Kerouack com produção de Coppola.  

FOLHA - Como reagiu ao convite para participar do longa comemorativo de Cannes? Qual a importância do festival hoje?
WALTER SALLES
- Toda vez que vem um convite semelhante, acho que alguém se enganou de endereço... De qualquer forma, não havia como dizer não ao convite do Gilles Jacob. Primeiro, pelo trabalho que ele realizou em defesa do cinema de autor durante tantos anos. Depois, pelo fato de que, num mundo em que cada vez menos filmes ocupam um número cada vez maior de salas, os festivais se tornaram um território de resistência. Cannes está fazendo 60 anos. Nos dias de hoje, é um jovem senhor. Que tenha vida longa...

FOLHA - Por que você acabou realizando dois curtas para o projeto?
SALLES
- Na hora de pensar em que curta propor, foi duro eleger entre a ficção e o documentário. Foi então que, junto com George Moura, tive a idéia de retomar a parceria iniciada com Castanha e Caju há seis anos, em um outro curta feito para Cannes intitulado "Vamos Afundar o Titanic". Por coincidência, Castanha e Caju tinham participado do ano França/Brasil e voltaram afiados. Os caras são realmente geniais. Com poucas informações, criam toda uma narrativa improvisada, altamente sardônica. Como o resultado ficou ainda mais politicamente incorreto do que tínhamos imaginado, preparei um plano B, no caso da reação não ser das mais acolhedoras. Foi o oposto o que acabou acontecendo, e lá vão o Castanha e Caju festejar os 60 anos do festival ao lado de Wenders e Angelopolous...

FOLHA - A restauração de "Limite" enfim foi concluída. Quantos anos Saulo Pereira de Mello e a Videofilmes trabalharam nesse projeto?
SALLES
- Na verdade, Saulo vem trabalhando na preservação e restauração de "Limite" há quase 50 anos. Foi ele quem realizou o primeiro processo de restauro, feito em 1958, quando, ainda muito jovem, viu o filme pela primeira vez na Faculdade de Filosofia do Rio e se apaixonou por ele. A segunda restauração foi iniciada há mais de cinco anos, sob a supervisão de Saulo e o apoio da Cinemateca Brasileira. Durante esses cinco anos, Saulo trabalhou em sincronia com a restauradora Patrícia de Fillipi. Foi criado um novo negativo, a partir dos elementos restaurados em 1958. Quando já estávamos sem fôlego para realizar o "transfer" digital, que ajuda a recuperar algumas partes mais danificadas, o canal francês Arte se associou ao projeto. É essa versão digital que será projetada em Cannes. Ainda faltará uma etapa do processo. Essa última fase, segundo o que Thierry Fremaux (diretor artístico do festival) se tornará possível graças ao World Cinema Foundation.

FOLHA - "Limite", enfim, ganhará o reconhecimento mundial que merece? Scorsese já assistiu ao filme ou verá em Cannes?
SALLES
- Fremaux conhece bem o filme, o admira e por isso o convidou. Já Scorsese vai descobri-lo em Cannes -ele já confirmou que estará presente à sessão. Em seguida, "Limite" será apresentado no National Film Theatre, do British Film Institute. Não é para menos: o filme de Peixoto continua à frente do seu tempo. É muito mais radical do que a maioria dos filmes que se dizem "experimentais" hoje.

FOLHA - Haverá um relançamento em cinema antes do DVD?
SALLES
- Sim, e essa etapa também será coordenada pelo Saulo. O primeiro lugar em que o filme será apresentado no Brasil será na Cinemateca Brasileira, que deu apoio irrestrito ao projeto de restauração.

FOLHA - Como será sua atuação como membro do comitê da World Cinema Foundation?
SALLES
- Em primeiro lugar, será necessário identificar filmes brasileiros e latino-americanos que precisam ser salvos com urgência. Já entrei em contato com os amigos do Icaic (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas) para saber do estado do negativo de "Memórias do Subdesenvolvimento", por exemplo. Espero contar com a ajuda de cineastas próximos, como Pablo Trapero, para ouvir sugestões na Argentina. No Brasil, vários filmes de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade foram restaurados recentemente, com o apoio da Petrobras. Mas há muito ainda a fazer por aqui.

FOLHA - "Mutum", de Sandra Kogut, que você assina como co-produtor, e "Via Láctea", de Lina Chamie, os dois longas brasileiros selecionados para Cannes, foram dirigidos por mulheres, com temas e estéticas que não respondem ao que se espera de mais óbvio do cinema brasileiro no exterior. O que a seleção desses dois filmes diz sobre a imagem do Brasil nos grandes festivais?
SALLES
- Vi os dois filmes e penso que ambos abrem novas e importantes perspectivas para o cinema brasileiro. Achei o filme de Lina Chamie de uma acuidade única, um filme que olha para a geografia dos personagens e a geografia de São Paulo de formas igualmente inovadoras. Lina Chamie dialoga com Cortázar, com os irmãos Campos, ao mesmo tempo em que faz cinema de verdade. No caso de "Mutum", não sou um observador parcial, já que somos co-produtores do filme. De qualquer forma, arrisco dizer que Sandra Kogut conseguiu algo muito difícil: traduzir Guimarães Rosa para o cinema com uma sensibilidade rara. Sintomaticamente, "A Via Láctea" e "Mutum" são dois filmes que vêm na contramão do cinema que fala da violência no país, uma temática que foi central nesses últimos cinco anos no cinema brasileiro.
Acho que esse ciclo cumpriu um papel importante, que foi o de denunciar algo que não se via, mas o fato é que essa temática da violência urbana foi pouco a pouco apropriada pela TV, ganhou a capa diária dos jornais. O que deve ser o cinema? Aquilo que anuncia um porvir, e não aquilo que anda a reboque. Talvez seja por isso que "A Via Láctea" e "Mutum", dois filmes de jovens diretoras, apontem para nova direção.

FOLHA - Em que pé está o projeto de documentário sobre o livro de Jack Kerouack, "On the Road", e a adaptação para o cinema que Coppola o convidou para dirigir?
SALLES
- Estou concluindo o documentário que parte em busca de "On the Road", que deve ficar pronto em meados do segundo semestre. Ainda é cedo para saber se o filme de ficção vai se concretizar, depois de 27 anos de tentativas, mas é possível que seja rodado no início de 2008. Terminei a primeira bateria de testes com atores há duas semanas, e foi um processo bem promissor.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.