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ENTREVISTA
WALTER SALLES
Festivais de cinema são território de resistência
Para o diretor de "Central do Brasil", eventos como Cannes são relevantes "num mundo em que cada vez menos filmes ocupam um número cada vez maior de salas"
PEDRO BUTCHER
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
O aniversário de 60 anos do
Festival de Cannes será comemorado hoje, 20 de maio, com a
exibição de "Chacun Son Cinéma" ("O Cinema de Cada Um"),
reunião de 33 curtas assinados
por uma espécie de "dreamteam" do cinema mundial.
Walter Salles foi o único brasileiro escolhido para participar
do time, ao lado de nomes como Wong Kar-wai, Ken Loach
e Wim Wenders.
Entusiasmado com o convite
de Gilles Jacob (presidente do
festival), Salles acabou realizando dois curtas radicalmente
diferentes. No primeiro, "A
8.944 Quilômetros de Cannes",
feito em colaboração com
George Moura, ele volta a filmar uma embolada de Castanha e Caju, personagens centrais do curta antiglobalização
"Vamos Afundar o Titanic", co-realizado com Daniela Thomas
e também exibido em Cannes,
em 2002. Agora, Castanha e
Caju voltam à porta de um velho cinema da cidade de Miguel
Pereira, no interior do Rio, para
fazer uma hilária improvisação,
versando sobre Cannes.
No segundo curta, "Carta a
V.", Salles empunha uma câmera super-8 para filmar o filho de
seis meses, Vicente, fazendo
uma reflexão pessoal e lírica sobre a importância do cinema e
o futuro da imagem. Narrado
pelo cineasta, o curta traz imagens de "Paris, Texas", de Wim
Wenders, "O Homem de Aran",
de Robert Flaherty, "Limite",
de Mario Peixoto, e "O Grande
Ditador", de Chaplin -este, a
escolha de Salles para apresentar o cinema ao filho.
Feito em um impulso, "Carta
à V." foi enviado para Jacob
mais tarde, com medo de que o
primeiro, com seu tom debochado, não se encaixasse no
longa. No fim das contas, os
dois foram selecionados: "A
8.944 Quilômetros de Cannes"
foi incluído no longa, enquanto
"Carta a V.", provavelmente,
será exibido antes de um filme
da competição oficial.
Mas a presença de Salles em
Cannes será mais ampla. Às
voltas com a preparação do
próximo longa de ficção, "Linha de Passe" (que deve começar a filmar mês que vem, com
Daniela Thomas), e com a
montagem do documentário
"Em busca de "On the Road'"
(sobre a obra de Jack Kerouack, que ele possivelmente
adaptará para o cinema), Salles
interrompeu a agenda no Brasil
para assumir uma série de responsabilidades no festival.
Na próxima terça, ele participa do lançamento da World Cinema Foundation, criada por
Martin Scorsese para bancar a
preservação de obras-primas
do cinema mundial. Salles foi
chamado por Scorsese para ser
o representante da fundação na
América Latina.
Na quarta, o cineasta apresenta na mostra Cannes Classics a versão restaurada de "Limite", um dos três filmes escolhidos para o lançamento oficial da fundação. A produtora
de Salles, Videofilmes, abriga o
Arquivo Mario Peixoto, de onde o especialista Saulo Pereira
de Mello comandou o longo
processo de recuperação do
único filme do cineasta.
Na entrevista a seguir, Salles
fala da participação em Cannes
e comenta o andamento do
projeto de "On the Road",
adaptação do livro de Kerouack
com produção de Coppola.
FOLHA - Como reagiu ao convite
para participar do longa comemorativo de Cannes? Qual a importância
do festival hoje?
WALTER SALLES - Toda vez que
vem um convite semelhante,
acho que alguém se enganou de
endereço... De qualquer forma,
não havia como dizer não ao
convite do Gilles Jacob. Primeiro, pelo trabalho que ele
realizou em defesa do cinema
de autor durante tantos anos.
Depois, pelo fato de que, num
mundo em que cada vez menos
filmes ocupam um número cada vez maior de salas, os festivais se tornaram um território
de resistência. Cannes está fazendo 60 anos. Nos dias de hoje, é um jovem senhor. Que tenha vida longa...
FOLHA - Por que você acabou realizando dois curtas para o projeto?
SALLES - Na hora de pensar em
que curta propor, foi duro eleger entre a ficção e o documentário. Foi então que, junto com
George Moura, tive a idéia de
retomar a parceria iniciada
com Castanha e Caju há seis
anos, em um outro curta feito
para Cannes intitulado "Vamos
Afundar o Titanic". Por coincidência, Castanha e Caju tinham participado do ano França/Brasil e voltaram afiados. Os caras são realmente geniais.
Com poucas informações,
criam toda uma narrativa improvisada, altamente sardônica. Como o resultado ficou ainda mais politicamente incorreto do que tínhamos imaginado,
preparei um plano B, no caso da
reação não ser das mais acolhedoras. Foi o oposto o que acabou acontecendo, e lá vão o
Castanha e Caju festejar os 60
anos do festival ao lado de
Wenders e Angelopolous...
FOLHA - A restauração de "Limite"
enfim foi concluída. Quantos anos
Saulo Pereira de Mello e a Videofilmes trabalharam nesse projeto?
SALLES - Na verdade, Saulo vem
trabalhando na preservação e
restauração de "Limite" há
quase 50 anos. Foi ele quem
realizou o primeiro processo de
restauro, feito em 1958, quando, ainda muito jovem, viu o filme pela primeira vez na Faculdade de Filosofia do Rio e se
apaixonou por ele. A segunda
restauração foi iniciada há mais
de cinco anos, sob a supervisão
de Saulo e o apoio da Cinemateca Brasileira. Durante esses
cinco anos, Saulo trabalhou em
sincronia com a restauradora
Patrícia de Fillipi. Foi criado
um novo negativo, a partir dos
elementos restaurados em
1958. Quando já estávamos sem
fôlego para realizar o "transfer"
digital, que ajuda a recuperar
algumas partes mais danificadas, o canal francês Arte se associou ao projeto. É essa versão
digital que será projetada em
Cannes. Ainda faltará uma etapa do processo. Essa última fase, segundo o que Thierry Fremaux (diretor artístico do festival) se tornará possível graças
ao World Cinema Foundation.
FOLHA - "Limite", enfim, ganhará o
reconhecimento mundial que merece? Scorsese já assistiu ao filme ou
verá em Cannes?
SALLES - Fremaux conhece bem
o filme, o admira e por isso o
convidou. Já Scorsese vai descobri-lo em Cannes -ele já
confirmou que estará presente
à sessão. Em seguida, "Limite"
será apresentado no National
Film Theatre, do British Film
Institute. Não é para menos: o
filme de Peixoto continua à
frente do seu tempo. É muito
mais radical do que a maioria
dos filmes que se dizem "experimentais" hoje.
FOLHA - Haverá um relançamento
em cinema antes do DVD?
SALLES - Sim, e essa etapa também será coordenada pelo Saulo. O primeiro lugar em que o
filme será apresentado no Brasil será na Cinemateca Brasileira, que deu apoio irrestrito ao
projeto de restauração.
FOLHA - Como será sua atuação como membro do comitê da World Cinema Foundation?
SALLES - Em primeiro lugar, será necessário identificar filmes
brasileiros e latino-americanos
que precisam ser salvos com
urgência. Já entrei em contato
com os amigos do Icaic (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas) para saber do estado do negativo de "Memórias do Subdesenvolvimento", por exemplo. Espero
contar com a ajuda de cineastas
próximos, como Pablo Trapero,
para ouvir sugestões na Argentina. No Brasil, vários filmes de
Glauber Rocha, Nelson Pereira
dos Santos e Joaquim Pedro de
Andrade foram restaurados recentemente, com o apoio da
Petrobras. Mas há muito ainda
a fazer por aqui.
FOLHA - "Mutum", de Sandra Kogut, que você assina como co-produtor, e "Via Láctea", de Lina Chamie, os dois longas brasileiros selecionados para Cannes, foram dirigidos por mulheres, com temas e estéticas que não respondem ao que se
espera de mais óbvio do cinema brasileiro no exterior. O que a seleção
desses dois filmes diz sobre a imagem do Brasil nos grandes festivais?
SALLES - Vi os dois filmes e penso que ambos abrem novas e
importantes perspectivas para
o cinema brasileiro. Achei o filme de Lina Chamie de uma
acuidade única, um filme que
olha para a geografia dos personagens e a geografia de São
Paulo de formas igualmente
inovadoras. Lina Chamie dialoga com Cortázar, com os irmãos Campos, ao mesmo tempo em que faz cinema de verdade. No caso de "Mutum", não
sou um observador parcial, já
que somos co-produtores do
filme. De qualquer forma, arrisco dizer que Sandra Kogut conseguiu algo muito difícil: traduzir Guimarães Rosa para o cinema com uma sensibilidade rara. Sintomaticamente, "A Via
Láctea" e "Mutum" são dois filmes que vêm na contramão do
cinema que fala da violência no
país, uma temática que foi central nesses últimos cinco anos
no cinema brasileiro.
Acho que esse ciclo cumpriu
um papel importante, que foi o
de denunciar algo que não se
via, mas o fato é que essa temática da violência urbana foi
pouco a pouco apropriada pela
TV, ganhou a capa diária dos
jornais. O que deve ser o cinema? Aquilo que anuncia um
porvir, e não aquilo que anda a
reboque. Talvez seja por isso
que "A Via Láctea" e "Mutum",
dois filmes de jovens diretoras,
apontem para nova direção.
FOLHA - Em que pé está o projeto
de documentário sobre o livro de
Jack Kerouack, "On the Road", e a
adaptação para o cinema que Coppola o convidou para dirigir?
SALLES - Estou concluindo o
documentário que parte em
busca de "On the Road", que
deve ficar pronto em meados
do segundo semestre. Ainda é
cedo para saber se o filme de
ficção vai se concretizar, depois
de 27 anos de tentativas, mas é
possível que seja rodado no início de 2008. Terminei a primeira bateria de testes com atores
há duas semanas, e foi um processo bem promissor.
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