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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Uma miss à minha porta
Já tinha visto de tudo. Mas nunca vira uma antiga candidata a miss fazendo limpezas
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FORAM ANOS e anos e anos em
busca das mulheres mais belas. Não fui caso único. E poderia dizer, como um escritor beat
decadente, que vi as melhores mentes da minha geração destruídas por
ruivas de olhos verdes e morenas de
cabelo negro. Mas uma loira genuína com a pele pintada a ouro? À minha porta? Ah, isso não é justo.
Nem real.
Tudo começou com uma oferta da
senhoria. Eu, rapaz solteiro, com vida dissoluta, estaria interessado nos
serviços de uma empregada doméstica três vezes por semana?
Contemplei as camisas por passar.
Lembrei, com repulsa, a louça em
forma de Everest na cozinha. Disse
que sim. Sem entusiasmo. No dia seguinte, a empregada chegou. E antes
de eu chegar a ela, um pouco de história, por favor.
Leitores, o que aconteceu em
1991? Eu respondo: em 1991, a antiga
União Soviética era sepultada. Ficaram apenas herdeiros festivos: russos, ucranianos, armênios, moldavos, lituanos. Uma salada. Os anos
seguintes não foram fáceis: com o
capitalismo à solta em solo virgem,
as antigas repúblicas soviéticas caíram na inflação e na escassez e começaram a exportar gente para os
quatro cantos da Europa.
Não falo apenas de gente pobre.
Falo de gente que ficou pobre de um
dia para o outro. Em qualquer cidade da Europa ocidental era possível
encontrar advogados servindo em
cafés ou antigos ministros trabalhando na construção civil. Cheguei
a conhecer um médico moscovita
que, depois da derrocada, era motoboy em Portugal.
Já tinha visto de tudo. Mas nunca
vira uma antiga candidata a miss fazendo limpezas. Chama-se Emma e,
na década de 90, ela concorria ao título ucraniano. Perdeu, não me perguntem como. Depois, a família não
agüentou a crise, Emma partiu com
a irmã para Madri e finalmente aterrou em Portugal. Aterrou em minha
casa.
Era Proust, creio, quem dizia que
as mulheres bonitas eram para homens sem imaginação. Se Proust estava certo, então eu sou uma pedra
em forma humana. Não, ela não é
bonita. Ela transforma a capela Sistina em grafite urbano. Ela reduz
qualquer escultura de Rodin a um
monte de sucata.
Os cabelos, longos, terminam onde começa um pescoço que faria as
delícias de Bela Lugosi. Os olhos, de
um azul como já não existe nos céus
de Lisboa, sorriem mesmo quando
ela não sorri. E, quando o sorriso
acontece em lábios generosos e de
um vermelho que dispensa qualquer pintura, o rosto ganha uma luz
que pode levar qualquer homem à
cegueira. O corpo é perfeito. Como
sei? Pelos pés: pequenos, esguios, ligeiramente ruborizados. Ela trabalha descalça e gosta de caminhar como as bailarinas. Ou como os gatos.
Silenciosa e nas pontas.
Começou no mês passado. Segundas, quartas e sextas. Achei melhor
incluir também as terças. E as quintas. E depois o sábado. E o domingo.
E o dobro do salário nos dias feriados. Oito horas por dia? Não. Doze.
Na impossibilidade de serem 24. E
nada de limpezas. Limpezas, princesa? Com essas mãos tão delicadas?
Eu limpo, ela existe. E amigos vários, incrédulos ao início, já começaram a fazer excursões à casa como
certos peregrinos a lugares sagrados. Chegam, acampam. Alguns pedem para levar uma relíquia da santa: um fio de cabelo, uma unha, um
dente. (Um dente?) Eu sou como
um policial em filme de Hollywood,
depois de selar o local do crime.
"Dispersem, por favor. Não há nada
para ver."
Mas há tudo para ver. Imagens do
concurso de miss, que ela mostrou
em fotos da época. Algumas canções
ucranianas, que aprendo a balbuciar
com a atenção cirúrgica de um aluno
aplicado.
Troquei o uísque pela vodca. Experimentei arenque (que delícia! como foi possível acreditar que o bacalhau era o supremo peixe?). Também sou capaz de reproduzir os passos mais elementares de uma dança
típica. E sem qualquer esforço, apesar das cãibras permanentes que me
fazem gemer a noite toda. E já digo
"bom dia", "boa tarde" e "boa noite"
na língua retorcida dos nativos.
Quando chegar a um nível mais profissional, resolvo tudo com um "casa
comigo" e depois parto com ela para
a lua-de-mel em Kiev.
Anos e anos e anos em busca das
mulheres mais belas. Mas foi o fim
do comunismo e a entrada arrasadora do capitalismo que trouxe uma
miss à minha porta. E logo agora,
que eu começava a ficar um pouquinho mais esquerdista.
Desculpem, camaradas. Mas, como diria o velho Karl, a cada um segundo suas necessidades.
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