São Paulo, quarta, 20 de maio de 1998

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"Poesia Alheia" vê história como ruína

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Entre as pessoas que lidam com literatura no Brasil, criou-se uma mania estranha e fatigante, que é falar dos problemas, das teorias, das armadilhas e dos prazeres que cercam a tradução de poesia. Já se especulou bastante, também, sobre as causas dessa voga de traduções, que nos atinge há vinte anos pelo menos.
Claro, a culpa -como sempre- cabe aos irmãos Campos, que fizeram da "transcriação" de poemas estrangeiros um gênero à parte na poesia brasileira. Já professei, mais de uma vez, minha birra com os concretistas e lembro-me de ter atribuído à pura "falta de inspiração" todo o empenho tradutório que mobiliza os poetas brasileiros.
Há, em todo caso, uma "querela das traduções", na qual não quero entrar. Relaciona-se com o esforço de integração do Brasil na "comunidade das nações" e com uma esperança na competência técnica: um misto de "savoir-faire" e de know-how, que agora encontra em FHC seu mestre indisputado.
Esse julgamento meio azedo não exclui o que senti lendo pela primeira vez, na adolescência, os poemas de Mallarmé traduzidos pelos concretos, numas férias de julho no Guarujá. Fazia frio, meu quarto tinha paredes pintadas modernisticamente de azul escuro, chovia, a capa do livro -editado pela Perspectiva- era toda em azul escuro e preto e ali pude ler alguns versos que ficam na memória como colunas nuas: "solidão, recife, estrela" ou "noite, desespero e pedraria".
Pouco importa. Toda a esperança na tecnologia, expressa pelos concretistas, desaba diante de um livro de traduções que encara a história mais como ruína do que como progresso. Refiro-me a "Poesia Alheia", de Nelson Ascher, livro contendo 124 poemas traduzidos, editado pela Imago.
Nelson Ascher viveu e conviveu com o concretismo; é uma "cria dos irmãos dos Campos", se quisermos. Segue o que esses têm de mais significativo, o apuro técnico, o cosmopolitismo, o viés intelectual. Mas eu não queria falar de teoria de tradução, de intelectualismo, de técnica.
Na verdade, basta ler os primeiros poemas traduzidos nessa coletânea de Nelson Ascher para perceber que está em jogo algo de muito mais trágico, de muito mais sério, de muito mais poético.
Ascher inicia seu livro com seis poemas dedicados às ruínas de Roma. Janus Vitalis, poeta latino da Renascença (1485-1580), diz ao peregrino que quem busca Roma em Roma não encontra em Roma Roma alguma: só ruínas. O tema se repete em du Bellay (1522-1560): "o que se toma/ por Roma ficou velho e se desfez." Viramos a página e o poeta polonês Szarzinsky (1550-1581), numa clave mais irônica, diz que, em Roma, o peregrino só "olha os escombros das muralhas circulares"... e uma "Roma vencida". Thomas Heywood (1574-1641) reescreve o mesmo poema, lembrando uma Roma com "despojos arrogantes", que "a si mesma, afinal, depôs". Mais uma página e encontramos Quevedo (1580-1645): "Buscas Roma a Roma, oh, peregrino, mas não há Roma em Roma..." A insistência de Ascher nessas traduções de traduções -o original latino reescrito em polonês ou em espanhol- não é arbitrária. Esse frontispício "romano" a seu livro de traduções é significativo. Representa, por assim dizer, o espanto dos modernos diante da grandeza dos antigos.
Assim, o peregrino que não reconhece a velha Roma diante das ruínas de Roma é o leitor de uma tradução na qual seria, em tese, irreconhecível a grandeza morta da poesia diante dos esforços modernos do poeta que traduz. O tradutor confessa sua derrota -a ruína, o monumento- diante do que tem pela frente.
Esses poemas sobre Roma dão ao livro de Ascher um significado maior, portanto, do que o de uma simples coletânea de traduções. Citando ambiguamente a sobrevivência de uma Roma morta, numa repetição de poemas classicistas, o tradutor parece indicar a decepção e a esperança que há em reviver este ou aquele poema estrangeiro, esta ou aquela experiência embalsamada.
O tradutor é um vampiro revivendo os velhos cadáveres de uma cidade morta, Roma, tema de um encontro entre poeta e pó. O vampirismo do húngaro Nelson Ascher, sua sede de sangue ao reviver cada poema, é tema puramente biográfico.
Do ponto de vista teórico, as coisas se complicam. Será que cada tradução não é esse esforço de reviver uma experiência? Mas será que cada poema, traduzido ou não, não é um esforço também? Releio os demais poemas traduzidos nessa coletânea. Dou alguns exemplos.
Paul Valéry, no "Silfo", pergunta: "Entrelido e oculto?/Que erros, ao arguto,/Foram prometidos!". Será que ele está falando da poesia ou da tradução da poesia? Quando Yeats, falando da morte de um aviador irlandês, diz que se sacrifica "pelo puro afã de se entreter", ou quando Elizabeth Bishop fala de "uma certa arte", a arte da perda, "que é fácil de estudar", não seria sobre a arte da tradução que, ao longo desse livro, Nelson Ascher está falando?
De modo que na própria escolha dos poemas a serem traduzidos encontramos um tradutor às voltas com a impossibilidade, com o drama da tradução. Mas o paradoxo é um pouco barato. Na escolha dos poemas, em especial nos primeiros sobre Roma, Ascher efetua um ato poético.
Ele parece estranhamente inconsciente do que fez. Na introdução ao volume, compara a tradução poética ao feito do "roman à clé": o escritor criaria máscaras que correspondem a pessoas reais, personagens que na realidade são pessoas com CIC e RG e a tradução de um poema seria como o desvendamento dessas identidades reais sob os pseudônimos criados pela ficção.
Surpreende-me que, em vez da idéia do "roman à clé", Ascher não tenha aplicado, para suas traduções, a idéia de "alegoria". Pois na alegoria há sempre, implícito, um ideal de tradução. Há, na verdade, uma alegoria da tradução nas traduções de Ascher: todas, talvez, representam a idéia de um passado como ruína, todas desempenham o papel de uma revivescência impossível; todas são um celebrar da morte, de uma morte em vida, de uma ressurreição. Traduzir seria a alegoria de uma revivescência impossível, de um contato instável com ruínas, de um renascer de cinzas.
Nesse sentido, o livro de traduções de Nelson Ascher não é apenas uma coletânea de proezas tecno-literárias, mas um ato poético diante do mundo: significa uma vitória diante das cinzas, diante do tempo, diante da morte. Cada tradução, aqui, é uma alegoria da vitória humana diante dos massacres que nos impõem o tempo, a história, o fascismo, a fatalidade que o fascismo manipula perversamente. Longa vida a esse livro.



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