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"Poesia Alheia" vê história como ruína
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Entre as pessoas que lidam
com literatura no Brasil,
criou-se uma mania estranha e
fatigante, que é falar dos problemas, das teorias, das armadilhas e dos prazeres que cercam a tradução de poesia. Já se
especulou bastante, também,
sobre as causas dessa voga de
traduções, que nos atinge há
vinte anos pelo menos.
Claro, a culpa -como sempre- cabe aos irmãos Campos, que fizeram da "transcriação" de poemas estrangeiros
um gênero à parte na poesia
brasileira. Já professei, mais de
uma vez, minha birra com os
concretistas e lembro-me de ter
atribuído à pura "falta de inspiração" todo o empenho tradutório que mobiliza os poetas
brasileiros.
Há, em todo caso, uma "querela das traduções", na qual
não quero entrar. Relaciona-se
com o esforço de integração do
Brasil na "comunidade das
nações" e com uma esperança
na competência técnica: um
misto de "savoir-faire" e de
know-how, que agora encontra em FHC seu mestre indisputado.
Esse julgamento meio azedo
não exclui o que senti lendo
pela primeira vez, na adolescência, os poemas de Mallarmé
traduzidos pelos concretos, numas férias de julho no Guarujá. Fazia frio, meu quarto tinha paredes pintadas modernisticamente de azul escuro,
chovia, a capa do livro -editado pela Perspectiva- era toda em azul escuro e preto e ali
pude ler alguns versos que ficam na memória como colunas nuas: "solidão, recife, estrela" ou "noite, desespero e
pedraria".
Pouco importa. Toda a esperança na tecnologia, expressa
pelos concretistas, desaba
diante de um livro de traduções que encara a história
mais como ruína do que como
progresso. Refiro-me a "Poesia
Alheia", de Nelson Ascher, livro contendo 124 poemas traduzidos, editado pela Imago.
Nelson Ascher viveu e conviveu com o concretismo; é uma
"cria dos irmãos dos Campos",
se quisermos. Segue o que esses
têm de mais significativo, o
apuro técnico, o cosmopolitismo, o viés intelectual. Mas eu
não queria falar de teoria de
tradução, de intelectualismo,
de técnica.
Na verdade, basta ler os primeiros poemas traduzidos nessa coletânea de Nelson Ascher
para perceber que está em jogo
algo de muito mais trágico, de
muito mais sério, de muito
mais poético.
Ascher inicia seu livro com
seis poemas dedicados às ruínas de Roma. Janus Vitalis,
poeta latino da Renascença
(1485-1580), diz ao peregrino
que quem busca Roma em Roma não encontra em Roma
Roma alguma: só ruínas. O tema se repete em du Bellay
(1522-1560): "o que se toma/
por Roma ficou velho e se desfez." Viramos a página e o poeta polonês Szarzinsky
(1550-1581), numa clave mais
irônica, diz que, em Roma, o
peregrino só "olha os escombros das muralhas circulares"... e uma "Roma vencida".
Thomas Heywood (1574-1641)
reescreve o mesmo poema,
lembrando uma Roma com
"despojos arrogantes", que "a
si mesma, afinal, depôs". Mais
uma página e encontramos
Quevedo (1580-1645): "Buscas
Roma a Roma, oh, peregrino,
mas não há Roma em Roma..."
A insistência de Ascher nessas
traduções de traduções -o
original latino reescrito em polonês ou em espanhol- não é
arbitrária. Esse frontispício
"romano" a seu livro de traduções é significativo. Representa, por assim dizer, o espanto
dos modernos diante da grandeza dos antigos.
Assim, o peregrino que não
reconhece a velha Roma diante das ruínas de Roma é o leitor de uma tradução na qual
seria, em tese, irreconhecível a
grandeza morta da poesia
diante dos esforços modernos
do poeta que traduz. O tradutor confessa sua derrota -a
ruína, o monumento- diante
do que tem pela frente.
Esses poemas sobre Roma
dão ao livro de Ascher um significado maior, portanto, do
que o de uma simples coletânea de traduções. Citando ambiguamente a sobrevivência de
uma Roma morta, numa repetição de poemas classicistas, o
tradutor parece indicar a decepção e a esperança que há
em reviver este ou aquele poema estrangeiro, esta ou aquela
experiência embalsamada.
O tradutor é um vampiro revivendo os velhos cadáveres de
uma cidade morta, Roma, tema de um encontro entre poeta e pó. O vampirismo do húngaro Nelson Ascher, sua sede
de sangue ao reviver cada poema, é tema puramente biográfico.
Do ponto de vista teórico, as
coisas se complicam. Será que
cada tradução não é esse esforço de reviver uma experiência?
Mas será que cada poema, traduzido ou não, não é um esforço também? Releio os demais
poemas traduzidos nessa coletânea. Dou alguns exemplos.
Paul Valéry, no "Silfo", pergunta: "Entrelido e oculto?/Que erros, ao arguto,/Foram prometidos!". Será que ele
está falando da poesia ou da
tradução da poesia? Quando
Yeats, falando da morte de um
aviador irlandês, diz que se sacrifica "pelo puro afã de se entreter", ou quando Elizabeth
Bishop fala de "uma certa arte", a arte da perda, "que é fácil de estudar", não seria sobre
a arte da tradução que, ao longo desse livro, Nelson Ascher
está falando?
De modo que na própria escolha dos poemas a serem traduzidos encontramos um tradutor às voltas com a impossibilidade, com o drama da tradução. Mas o paradoxo é um
pouco barato. Na escolha dos
poemas, em especial nos primeiros sobre Roma, Ascher
efetua um ato poético.
Ele parece estranhamente inconsciente do que fez. Na introdução ao volume, compara
a tradução poética ao feito do
"roman à clé": o escritor criaria máscaras que correspondem a pessoas reais, personagens que na realidade são pessoas com CIC e RG e a tradução de um poema seria como o
desvendamento dessas identidades reais sob os pseudônimos criados pela ficção.
Surpreende-me que, em vez
da idéia do "roman à clé", Ascher não tenha aplicado, para
suas traduções, a idéia de "alegoria". Pois na alegoria há
sempre, implícito, um ideal de
tradução. Há, na verdade,
uma alegoria da tradução nas
traduções de Ascher: todas,
talvez, representam a idéia de
um passado como ruína, todas
desempenham o papel de uma
revivescência impossível; todas
são um celebrar da morte, de
uma morte em vida, de uma
ressurreição. Traduzir seria a
alegoria de uma revivescência
impossível, de um contato instável com ruínas, de um renascer de cinzas.
Nesse sentido, o livro de traduções de Nelson Ascher não é
apenas uma coletânea de proezas tecno-literárias, mas um
ato poético diante do mundo:
significa uma vitória diante
das cinzas, diante do tempo,
diante da morte. Cada tradução, aqui, é uma alegoria da
vitória humana diante dos
massacres que nos impõem o
tempo, a história, o fascismo, a
fatalidade que o fascismo manipula perversamente. Longa
vida a esse livro.
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