São Paulo, quarta-feira, 20 de junho de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A gentileza de estranhos

O Rio é a cidade mais prestativa do mundo, seguida por San José (Costa Rica) e Lilongwe (Malawi)

O RIO de Janeiro está de parabéns. Leio na edição européia do "Financial Times" que o Rio não é apenas a cidade do futebol e do samba. Também lá existe fraternidade.
Eu já sabia do fato por experiência própria. Mas agora a tese adquire contornos científicos: Robert Levine, psicólogo da universidade estadual da Califórnia, resolveu partir para 23 grandes cidades e testar a afabilidade dos nativos. Como?
Deixando cair uma lapiseira na calçada, um jornal no café. E simulando cegueira no momento de atravessar a rua. Depois, esperou pela reação dos estranhos.
Resultado: o Rio é a cidade mais prestativa do mundo, seguida de perto por San José, na Costa Rica, e Lilongwe, no Malawi. As cidades menos prestativas dão pelo nome de Kuala Lumpur, na Malásia, e a inevitável Nova York, onde a indiferença perante os outros é marca distintiva no trato social.
Para Levine, existe uma conclusão óbvia: as cidades mais pobres tendem a desenvolver virtudes de afabilidade social que não se encontram nas urbes mais ricas, do Oriente ou do Ocidente.
Existem excepções, claro: Estocolmo ou Copenhague são ricas e são prestativas; mas as excepções confirmam a regra e a regra é fatal para a simpatia capitalista.
O estudo de Levine é interessante, até por motivos filosóficos. Ele tem a ousadia de desmentir a teoria, tão cara a Hobbes, de que a vida em sociedades mais primitivas tende a ser curta, pobre, solitária e brutal.
Daí a importância do Estado para Hobbes ou, para conservadores como Burke, a importância de uma tradição civilizadora, capaz de "vestir" os homens com os recursos do "guarda-roupa" cultural.
Se Rousseau acreditava num selvagem bom e incorrompido pelas desigualdades da civilização, o anti-sentimentalismo dos conservadores defende que só a civilização impede a corrupção natural e humana, que nasce de nossa imperfeição intelectual e moral.
Mas é sobretudo no plano pessoal que o estudo de Levine não me convence. Sim, o Rio é caso à parte, e presumo que seria sempre um caso à parte se a cidade fosse mais rica. Mas a tese não cola para cidades pobres, como Casablanca (no Marrocos) ou o Cairo (no Egito), onde sempre fui tratado com hostilidade pelos indígenas.
O mesmo para as cidades do leste da Europa, sobretudo antes da queda do Muro de Berlim: a miséria material acabava sempre por contaminar, com desconfiança e algum temor, qualquer lisura no trato pessoal.
Hoje, quando regresso a Bucareste ou Varsóvia, cidades que enriquecem lentamente, sou tratado como nunca fui antes de 1989.
O inverso também se aplica: sinto-me em casa em Londres; idem para qualquer cidade italiana; aliás, para qualquer cidade da "velha Europa".
E sobre os Estados Unidos, a confissão sincera de que os americanos, se pecam no trato com os outros, pecam sobretudo por excesso. Excesso de simpatia, entendam, um traço que normalmente deprime um deprimido como eu.


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