São Paulo, quarta-feira, 20 de junho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Cão sem dono, terreno baldio

É em torno da ameaça de proletarização da classe média que o filme está girando o tempo todo

ECONOMISTAS REPETEM há anos que, para o Brasil começar a crescer, falta fazer direitinho a "lição de casa".
Na mesma ordem de raciocínio, dizia-se das empresas estatais que deveriam passar por um "saneamento" financeiro antes de serem privatizadas. Desse modo, a "parte podre" das companhias seria absorvida pelo Estado, para que o investidor estrangeiro adquirisse um produto de qualidade.
Essa fábula de "bom comportamento" talvez não esteja distante do enredo de "Cão sem Dono", o último filme de Beto Brant. Temas como monetarismo e privatização passam longe de "Cão sem Dono", que parece dever mais ao tom deprê de alguns filmes franceses do que à tradição alegórica do cinema nacional.
O que vemos na tela são as cenas de sexo e de tédio de um rapaz feioso, acabrunhado e sem profissão (Júlio Andrade) e de uma aspirante a modelo internacional (Tainá Müller), um bocado caxias e bem mais carinhosa com o namorado do que ele estava a merecer.
Há de fato tipos assim, cães sem dono, que sem fazer muita coisa terminam sendo cuidados pelos outros. Não apenas Marcela, mas também os pais e até o zelador do prédio tomam conta de Ciro, que sem ser antipático termina provocando mais distanciamento do que solidariedade por parte do espectador.
Será inveja deste crítico? O sucesso do protagonista com a namorada belíssima pode sem dúvida irritar um pouco o público masculino -enquanto as mulheres da platéia talvez se identifiquem, olhando para o marmanjo sentado na poltrona ao lado, com a capacidade de entrega e tolerância de que está imbuída a personagem de Tainá Müller.
O mais interessante de "Cão sem Dono", contudo, é aquilo que não pertence à intimidade do casal, e que, a rigor, nem mesmo aparece na tela. Ao contrário de "O Invasor", filme de Beto Brant onde não faltavam cenas externas e retratos panorâmicos da vida urbana de São Paulo, "Cão sem Dono" mostra no máximo uma ou duas ruas da cidade onde foi rodado, Porto Alegre.
A oposição entre bairros nobres e periferia, que era o tema principal de "O Invasor", quase que desaparece; ou melhor, é vista do avesso, neste novo filme de Brant. Em "Cão sem Dono", o casalzinho de classe média termina conhecendo uma família jovem no subúrbio porto-alegrense; o que marca esse encontro não é a violência, e sim o carinho e a espontaneidade.
Difícil ver no cinema brasileiro, aliás, conversas tão espontâneas, tão "domésticas", quanto as que acontecem nas raras vezes em que Ciro está com seus pais; sinal dos tempos, o casulo familiar deixou de ser o foco inicial da revolta adolescente para se tornar o único ponto de referência do personagem.
Não há, propriamente, nada contra o que se revoltar -exceto aquilo que não está ao alcance de ninguém, e que nem mesmo entra no campo de visão do filme. Mas não acredito que a "realidade social" tenha sido eliminada de "Cão sem Dono". Em vez de surgir disfarçada atrás de máscaras e alegorias, está presente -só que fora da cena, na forma de alusão, de incógnita ou de ameaça.
O pai de Ciro é dono de um terreno impossível de vender. É que, em frente, o governo depositou enormes canos de concreto para uma obra que não será terminada nunca.
O resultado são dezenas de mendigos usando os canos como moradia. Para muitos cineastas, seria tentador mostrar essa paisagem de Calcutá em Porto Alegre. Isso não acontece com Beto Brant: a informação nos vem de uma conversa, apenas, diante de um prato de lasanha...
Aquelas moradias miseráveis seriam como que o "buraco negro" do enredo, algo que não pode ser visto nem apresentado; e, a exemplo do que se diz na teoria científica, exercem uma atração gravitacional invisível sobre "Cão sem Dono".
Pois é em torno da ameaça de proletarização de setores da classe média (estudantes de letras, filhos de pequenos profissionais liberais, jovens pouco adaptados à competitividade contemporânea) que o filme, creio, está girando o tempo todo.
Há algumas décadas, muito se pensou e fez, no âmbito da esquerda, em favor de um encontro entre a classe média radical e um suposto proletariado revolucionário. Em "O Invasor", esse tema recebe uma versão sarcástica, como um pesadelo sinistro; "Cão sem Dono" oferece outra possibilidade: a de que, se o sonho acabou, o pesadelo também pode passar. Desde que, é claro, você esteja dormindo ao lado de uma modelo sensacional.


coelhofsp@uol.com.br

Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: São Paulo Fashion Week: Último dia tem romantismo e alto-astral
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.