São Paulo, sábado, 20 de junho de 2009

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LIVROS

"Rotular escrita é a origem do seu fim"

Escritor mexicano Mario Bellatin, convidado da 7ª Flip, lança coletânea de 35 micro-histórias que têm nomes de flores

"Muitas vezes em meus livros se chega a situações limites, que não vemos todos os dias", argumenta o autor de "Flores"


MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

O escritor mexicano Mario Bellatin, 48, poderia ser um personagem de David Lynch: maneta, exibe sua prótese com o orgulho de um Capitão Gancho e é sufi -seita mística muçulmana que cultiva o ascetismo e o transe como forma de iluminação. Por vezes, ele circula com a saia típica dos sufis. Toda essa fanfarra visual pode distrair do que mais interessa -os seus livros. Bellatin é originalíssimo e cria mundos que só parecem, e assim mesmo de maneira distante, com seus outros livros.
"Flores" (2001) -que a Cosac Naify lança na Flip, onde o escritor debaterá com Cristovão Tezza- é uma das melhores amostras do mundo de Bellatin. São 35 micro-histórias com nomes de flores em que as imagens saltam à frente da narrativa: o cientista alemão que descobre um mal terrível e trata tudo como a mais pura rotina, um culto que tem um altar para "adultos maltratados na infância", o pai que infecta o filho com o vírus da Aids.
Vítima de talidomida, remédio dado a grávidas que sofriam de enjoo que provocou má formação nos bebês, Bellatin usa pedaços de sua história no livro. Um dos personagens é um escritor que usa uma perna mecânica "decorada com pedras artificiais", um eco óbvio das
próteses artísticas que um artista plástico cria para o próprio Bellatin. Na entrevista a seguir, feita por e-mail, ele diz que seria "empobrecedor" ler "Flores" como um retrato dos desastres da ciência. Sobre as situações incomuns que descreve, afirma: "Creio que as utilizo como uma forma de seduzir o leitor, para dar-lhe a possibilidade de transitar por uma trilha que ele não andaria de outro modo".

 

FOLHA - "Flores" tem personagens com más-formações genéticas por causa de remédios dados a mulheres grávidas. Você acha que o seu livro pode ser lido como microrretratos dos desastres da ciência?
MARIO BELLATIN
- Creio que é um livro feito para que possa ser lido da maneira que o leitor quiser. Para mim, tomar o livro como um arrazoado contra a ciência o empobrece. Jamais teria escrito nada para tratar de um assunto semelhante. Talvez fizesse outras ações, mas escrever não. Ah, e não havia notado que existiam três personagens com má-formação genética. Obrigado por me fazer notar. Diante desta observação, continuo constatando que um livro é uma infinita caixa de surpresas, principalmente para o suposto autor.

FOLHA - Também se pode ler "Flores" como uma coleção de "japonaiseries". Por que você cultua tanto as artes orientais? É um modo para deixar evidente o artifício da escrita?
BELATIN
- Se você descobre no livro uma coleção de "japonaiseries", vá adiante. Mas não me agrada de todo uma leitura semelhante porque de alguma maneira ela se assemelha com certa tendência europeia de utilizar esse tipo de recurso. Não tenho predileção especial pela literatura oriental, gosto como gosto de tantas outras. Porém, ela me serve para utilizar algumas de suas estratégias para preservar algo que está presente desde o começo dos meus livros: a ausência de um tempo e lugar definidos.

FOLHA - Por que os personagens de "Flores" buscam sexo alternativo, são de religiões pouco convencionais e têm explicações que nunca passam pela ciência?
BELLATIN
- Se você me desse uma tabela do que é a normalidade, talvez eu pudesse ver se ações que se desenvolvem no livro se aproximam ou se distanciam desses conceitos. Porém, deixando a retórica de lado, me parece que muitas vezes em meus livros se chega a situações limites, que não vemos todos os dias, ao menos de maneira pública. Racionalmente, creio que as utilizo como uma forma de seduzir o leitor, para dar-lhe a possibilidade de transitar por uma trilha que ele não andaria de outro modo.

FOLHA - Por que a religião aparece em "Flores" sempre próxima do sexo e da perversão? Isso tem alguma relação com o período que você estudou teologia?
BELLATIN
- Isso de eu ter estudado teologia sempre se presta a confusão. Passei por ali de uma maneira desapegada, como um tipo de espião, como fiz com a filosofia e com o cinema, levado somente pelo interesse de descobrir à distância que elementos dessas disciplinas poderiam me ajudar a decifrar a minha escrita, a dar-me certas luzes que me permitissem seguir adiante com ela, porque sobretudo em minha época de estudante essa escritura tendia a enroscar-se em si mesma ou se empenhava a tomar rumos que não levavam a lugar algum e meu terror nesses anos é que ela chegaria a aniquilar-se a si mesma. Como uma serpente que morde o rabo. É por isso que até agora minha prática sufi me ajuda a explorar limites que de outra forma não me ocorreria fazer. Religião, sexo e perversão -constante do homem? Não creio que meus livros contribuam com algo de novo ao tema.

FOLHA - Seus livros têm uma relação forte com as artes plásticas. "El Grand Vidrio" usa o mesmo título de um trabalho de Duchamp e "Lecciones para una Liebre Muerta", de uma performance de Joseph Beuys. Essa relação deriva do seu gosto pelas imagens ou é uma maneira de escapar da tradição literária?
BELLATIN
- Creio que é um gosto para demonstrar a mim mesmo de que tudo é parte do mesmo e que, alguém que começa a fazer classificações e separações, a única coisa que faz é pôr limites às possibilidades de infinito que só a arte -a literatura tomada como tal- e talvez a mística possuem.

FOLHA - Por que você não gosta que chamem a sua literatura de experimental?
BELLATIN
- Não gosto que a chamem de nenhuma maneira. Qualquer selo é um tipo de estandardização e estou convencido de que rotular uma escrita é a origem de seu fim.


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