São Paulo, sábado, 20 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Wim Wenders, notas sobre a violência

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

No mínimo, inoportuno. Escrever sobre agressões e transgressões nesta quadra reservada à euforia federal é, no mínimo, despropositado. Imprudente. Esta alegria auriverde que se articula e se agrega espontaneamente nas esquinas, calçadas, vilarejos, metrópoles, lojinhas, shoppings, bunkers de luxo e favelas nada tem de perigosa.
A esta altura do campeonato, ou da Copa, tanto os antropólogos profissionais como os observadores de botequim não divisaram indício algum de transbordamento emocional. A formidável animação é salutar, desopilante, construtiva (apesar dos feriados semanais e dos inconvenientes urbanos até 12 de julho).
A folia mantém-se nos limites da folgança, não chegou à loucura. A nação torce, mas não distorce sua devoção ao futebol. Não há "hooligans" à vista, mas a palavra-fenômeno não é tão nova quanto parece (lembro do meu pai, há mais de meio século, usando em russo "chuligán" para designar peraltas, desordeiros e, talvez mesmo, crianças desobedientes (1).
No lapso entre partidas e comemorações aqui, nos confins da desimportância, algumas fissuras chamam a atenção porque ocorrem não apenas no pacto social, mas no plano maior do concerto humano. De algumas jorra muito sangue.
A 46ª chacina deste ano em São Paulo, com 11 vítimas fatais (até o momento em que escrevo estas notas), finalmente trouxe o nosso Vietnã para as primeiras páginas. O 44º massacre com quatro mortos e uma adolescente grávida gravemente ferida foi relegado aos cadernos de notícias locais no dia 13/6 (sem continuação nos seguintes); o 45º nem sequer mereceu registro na grande imprensa, certamente porque não atingiu o coeficiente de publicação.
Ao todo, em 1998, já foram liquidadas 162 pessoas na Grande São Paulo, mesma cifra do ano passado, com 47 chacinas, indício seguro de que vamos dobrar nosso próprio recorde. Os jornais registraram que a PM desconfia da ação de traficantes. O secretário de Segurança ouvido por esta Folha (18 de junho, pág. 3-1/4) levanta a tese de que o desemprego é o grande responsável pelo aumento da criminalidade. Estudo preparado pela Fesp (Fundação Escola de Sociologia e Política), publicado há dias neste jornal e agora retomado, afirma que, computando as prisões efetuadas em 1996, não há vinculação entre violência e drogas.
Outra fonte ("Estadão", 18 de junho, pág. C-4), com base nas estatísticas da polícia, permite cálculos em direção oposta: incluindo esta, 19 chacinas tiveram como motivo (já esclarecido ou suspeito) "entorpecentes" e "drogas" (41,3% do total). As rubricas "acerto de contas", "desentendimento" e "vingança" -que poderiam estar relacionadas com o narcotráfico- produziram 13, isto é 28,2%. Nessa hipótese especulativa teríamos 69% do total das matanças relacionadas com drogas. Não aparecem nas estatísticas, mas algumas dessas ações podem ter sido perpetradas por policiais que vivem de chantagem, usando drogas como pretexto (prática frequente em várias capitais do país).
Essa é uma tragédia que não admite politizações nem atenuações. É uma violência que ocorre a nossa frente, quase todos os dias e fere a todos, indistintamente. Dizer que a culpa é do outro só a agravará.
A autoflagelação também é uma violência, e no repertório das violências auto-impostas (cujo ápice é o suicídio) inclui-se a greve de fome. O Mahatma Gandhi a praticou na Índia para protestar contra o colonialismo britânico; aqui no Brasil foi usada para forçar a ditadura a abrandar o tratamento aos presos políticos. Uma greve de fome para confrontar os padrões salariais nas universidades federais e com indícios de conotação eleitoral não é apenas um desperdício, mas uma violação dos princípios elementares de proteção ao ser humano, mesmo que violadores e violados sejam as mesmas pessoas.
Wim Wenders no seu mais recente filme, "O Fim da Violência", trata da violência em todas as latitudes e dimensões, embora centrado nas colinas de Los Angeles com os protagonistas ligados à indústria do entretenimento. Bela e sutilíssima obra, ainda que narrada com os alucinantes recursos narrativos de multimídia (monitores de Internet, laptops, câmaras de vigilância, celulares etc.). Esta é a maestria de Wenders: utilizar linguagem e maneirismos de um cinema seduzido formalmente pela violência para insinuar a mensagem reflexiva e especulativa. Mas claramente antiviolenta.
Enredados num enredo cuja matéria prima é a própria violência, personagens aflitos, ao longo do filme, querem entender -defina a violência, defina o perigo. Wenders e o co-roteirista Nicholas Klein (também autor do argumento) não fornecem respostas.
Querem apenas flagrar um processo inflamatório, um grande cancro veloz e letal que atinge a todos: a esposa intelectualizada agora dona do mundo, a faxineira salvadorenha salva pela CIA num massacre dos "contras", o "rapper" negro, até os garotos da plácida família de jardineiros mexicanos, a ilha de bonomia, onde o milionário produtor de filmes espetaculares expurga-se do lixo que disseminou.
Os resenhadores acharam o filme insuficiente, concederam-lhe as estrelas regulamentares. Adoraria ver esse filme discutido por críticos como Paulo Emílio, Flávio Tambellini, Rubens Biáfora, Pola Schwarstuch, Alex Vianny, Salviano Cavalcanti de Paiva, Moniz Vianna, Alberto Shatovsky, Ely Azeredo ou José Carlos Avellar. Para explorar todo o seu potencial de perplexidades e magnificar os preciosos detalhes que a dupla de criadores foram plantando aqui e ali.
O cinema óbvio e ruidoso criou um gênero de comentário reiterativo e linear. Ou foi este que gerou aquele? Não seria essa também uma violência contra a superior arte de oferecer juízos ?
Defina a crítica, diria Wenders.


(1) O Professor Boris Schneidermann confirma o seu uso generalizado no idioma russo com origem inglesa.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.