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Wim Wenders, notas sobre a violência
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
No mínimo, inoportuno. Escrever sobre agressões e transgressões nesta quadra reservada à euforia federal é, no mínimo, despropositado. Imprudente. Esta alegria auriverde
que se articula e se agrega espontaneamente nas esquinas,
calçadas, vilarejos, metrópoles,
lojinhas, shoppings, bunkers
de luxo e favelas nada tem de
perigosa.
A esta altura do campeonato, ou da Copa, tanto os antropólogos profissionais como os
observadores de botequim não
divisaram indício algum de
transbordamento emocional.
A formidável animação é salutar, desopilante, construtiva
(apesar dos feriados semanais
e dos inconvenientes urbanos
até 12 de julho).
A folia mantém-se nos limites da folgança, não chegou à
loucura. A nação torce, mas
não distorce sua devoção ao
futebol. Não há "hooligans" à
vista, mas a palavra-fenômeno
não é tão nova quanto parece
(lembro do meu pai, há mais
de meio século, usando em russo "chuligán" para designar
peraltas, desordeiros e, talvez
mesmo, crianças desobedientes
(1).
No lapso entre partidas e comemorações aqui, nos confins
da desimportância, algumas
fissuras chamam a atenção
porque ocorrem não apenas no
pacto social, mas no plano
maior do concerto humano. De
algumas jorra muito sangue.
A 46ª chacina deste ano em
São Paulo, com 11 vítimas fatais (até o momento em que escrevo estas notas), finalmente
trouxe o nosso Vietnã para as
primeiras páginas. O 44º massacre com quatro mortos e
uma adolescente grávida gravemente ferida foi relegado
aos cadernos de notícias locais
no dia 13/6 (sem continuação
nos seguintes); o 45º nem sequer mereceu registro na grande imprensa, certamente porque não atingiu o coeficiente
de publicação.
Ao todo, em 1998, já foram
liquidadas 162 pessoas na
Grande São Paulo, mesma cifra do ano passado, com 47
chacinas, indício seguro de que
vamos dobrar nosso próprio
recorde. Os jornais registraram
que a PM desconfia da ação de
traficantes. O secretário de Segurança ouvido por esta Folha
(18 de junho, pág. 3-1/4) levanta a tese de que o desemprego é o grande responsável
pelo aumento da criminalidade. Estudo preparado pela
Fesp (Fundação Escola de Sociologia e Política), publicado
há dias neste jornal e agora retomado, afirma que, computando as prisões efetuadas em
1996, não há vinculação entre
violência e drogas.
Outra fonte ("Estadão", 18 de
junho, pág. C-4), com base nas
estatísticas da polícia, permite
cálculos em direção oposta: incluindo esta, 19 chacinas tiveram como motivo (já esclarecido ou suspeito) "entorpecentes" e "drogas" (41,3% do total). As rubricas "acerto de
contas", "desentendimento" e
"vingança" -que poderiam
estar relacionadas com o narcotráfico- produziram 13, isto é 28,2%. Nessa hipótese especulativa teríamos 69% do
total das matanças relacionadas com drogas. Não aparecem
nas estatísticas, mas algumas
dessas ações podem ter sido
perpetradas por policiais que
vivem de chantagem, usando
drogas como pretexto (prática
frequente em várias capitais
do país).
Essa é uma tragédia que não
admite politizações nem atenuações. É uma violência que
ocorre a nossa frente, quase todos os dias e fere a todos, indistintamente. Dizer que a culpa
é do outro só a agravará.
A autoflagelação também é
uma violência, e no repertório
das violências auto-impostas
(cujo ápice é o suicídio) inclui-se a greve de fome. O Mahatma Gandhi a praticou na
Índia para protestar contra o
colonialismo britânico; aqui
no Brasil foi usada para forçar
a ditadura a abrandar o tratamento aos presos políticos.
Uma greve de fome para confrontar os padrões salariais
nas universidades federais e
com indícios de conotação
eleitoral não é apenas um desperdício, mas uma violação
dos princípios elementares de
proteção ao ser humano, mesmo que violadores e violados
sejam as mesmas pessoas.
Wim Wenders no seu mais
recente filme, "O Fim da Violência", trata da violência em
todas as latitudes e dimensões,
embora centrado nas colinas
de Los Angeles com os protagonistas ligados à indústria do
entretenimento. Bela e sutilíssima obra, ainda que narrada
com os alucinantes recursos
narrativos de multimídia (monitores de Internet, laptops,
câmaras de vigilância, celulares etc.). Esta é a maestria de
Wenders: utilizar linguagem e
maneirismos de um cinema seduzido formalmente pela violência para insinuar a mensagem reflexiva e especulativa.
Mas claramente antiviolenta.
Enredados num enredo cuja
matéria prima é a própria violência, personagens aflitos, ao
longo do filme, querem entender -defina a violência, defina o perigo. Wenders e o co-roteirista Nicholas Klein (também autor do argumento) não
fornecem respostas.
Querem apenas flagrar um
processo inflamatório, um
grande cancro veloz e letal que
atinge a todos: a esposa intelectualizada agora dona do
mundo, a faxineira salvadorenha salva pela CIA num massacre dos "contras", o "rapper"
negro, até os garotos da plácida família de jardineiros mexicanos, a ilha de bonomia,
onde o milionário produtor de
filmes espetaculares expurga-se do lixo que disseminou.
Os resenhadores acharam o
filme insuficiente, concederam-lhe as estrelas regulamentares. Adoraria ver esse filme
discutido por críticos como
Paulo Emílio, Flávio Tambellini, Rubens Biáfora, Pola
Schwarstuch, Alex Vianny,
Salviano Cavalcanti de Paiva,
Moniz Vianna, Alberto Shatovsky, Ely Azeredo ou José
Carlos Avellar. Para explorar
todo o seu potencial de perplexidades e magnificar os preciosos detalhes que a dupla de
criadores foram plantando
aqui e ali.
O cinema óbvio e ruidoso
criou um gênero de comentário reiterativo e linear. Ou foi
este que gerou aquele? Não seria essa também uma violência
contra a superior arte de oferecer juízos ?
Defina a crítica, diria Wenders.
(1) O Professor Boris Schneidermann confirma o
seu uso generalizado no idioma russo com origem inglesa.
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