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"Não ser feliz tudo explica"
Terça-feira, 11 de julho
Às 21h, o artista se veste. Como
o Grec é ao ar livre, decide não colocar gravata. Passa Benguay, um
unguento muscular, nas pernas e
coloca uma ceroula para que o
creme não passe para o pano da
calça azul-marinho, da mesma
cor do paletó. Calça um par de tênis brancos que seu filho João
Marcelo lhe deu de presente.
Sai da suíte pouco antes das 22h,
e 20 minutos antes do horário
marcado já está no camarim do
Grec. Fica sozinho, concentrado.
Enquanto isso, Pequinho e Octavio Terceiro fixam com fita adesiva sete cartolinas no chão do palco, ao redor do banquinho onde
João Gilberto sentará. Nelas estão
escritos os nomes das músicas
que o artista interpretará.
"Eis aqui esse sambinha feito de
uma nota só", canta o artista. São
22h30 em ponto e o show está começando. Canta em seguida
"Sandália de Prata". Ao final, pede que aumentem o volume do
violão. Quatro músicas depois,
muda o banquinho de lugar. "Está vindo um vento de frente", explica ao público. Mais quatro músicas e reclama do microfone do
violão: "Nunca vi um como esse,
parece um helicóptero".
Uma hora e 15 minutos depois,
o artista sai do palco. É ovacionado, volta e canta por mais 15 minutos. O público o aplaude e pede
que volte. O artista, no entanto,
saiu correndo, entrou no Mercedes e já está no hotel enquanto a
audiência ainda grita "bis".
De volta à suíte, sua primeira
providência foi telefonar para sua
irmã Dadainha, que mora em Vitória. Sempre faz isso, onde quer
que esteja. Ela aguarda o telefonema de velas acesas, rezando para
que o show tenha sido bom.
No entender do artista, o concerto não foi bom. Mesmo nos
dias seguintes, depois de cinco
jornais espanhóis terem publicado críticas extremamente elogiosas do primeiro show em Barcelona, manterá a sua opinião. "O violão estava baixo. Ele tinha de estar
em torno da voz, formando um
todo com ela", diz.
Ele liga para o serviço de quarto
e encomenda talharim e filés para
todos. Pede que Joaquim escolha
o vinho. O garçom traz um Rioja
engarrafado especialmente para o
hotel. "Escândalo", diz o artista ao
provar o vinho, fazendo um brinde a Joaquim.
Toca o telefone. É Paul Berdah,
um francês nascido na Tunísia
que veio de Paris para ver o show.
Formado em odontologia, ele é
amigo de João Gilberto há dez
anos, se bem que nunca tenham
conversado pessoalmente. A amizade deles é telefônica. Ao ouvir o
artista cantar e tocar pela primeira vez, Berdah desistiu de ser dentista. Tornou-se jornalista, especializou-se em música brasileira,
aprendeu português e violão unicamente com o intuito de entender melhor a arte do artista.
Berdah estava acompanhado
por seu irmão mais novo, Jean-Jacques, também ele fascinado
pela música de João Gilberto.
Ambos acharam o show excelente, mas concordam que o violão
estava baixo. Paul Berdah se
prontifica a ir no dia seguinte corrigir o som do teatro Grec.
João Gilberto chama Berdah para ver o que há no criado-mudo à
direita da cama: uma foto emoldurada de sua mãe, fotos e dois livros do guru Paramahansa Yogananda, morto em 1952, uma imagem de santa Clara e uma Bíblia.
Como o artista, Berdah é iogue.
João Gilberto conta como descobriu Yogananda. Ele vivia em Nova York com "uma mulher que
gostava de sair de casa". Num sábado, ela o convocou a passearem
pela Broadway, "como se isso me
fosse fazer mais feliz", conforme
diz. "Mas me lembrei do trecho
da Bíblia em que está dito que, se
te obrigarem a andar cinco léguas,
ande sete. Fiz então força da minha fraqueza e fui à Broadway".
Lá, entraram numa livraria. A
mulher pegou um exemplar da
"Autobiografia de um Iogue", de
Yogananda, e leu alguns trechos
em voz alta. João Gilberto interessou-se e comprou o livro. Passou
a seguir os ensinamentos do guru.
Depois, já no México, encontrou
uma mestra que havia estudado
com Yogananda. Foi ela quem o
iniciou na krya yoga.
O artista acha que a krya yoga
de Yogananda o ajudou a encontrar-se, ou a reencontrar-se. "Antes de ir para a América, eu não falava sobre assuntos. Não criticava
nem atores canastrões. Ficava
quieto enquanto todo mundo
metia o pau neles porque entendia que eram seres humanos fazendo o melhor que podiam. Na
América, eu mudei. Com Yogananda, voltei a concentrar-me.
Aprendi com ele que o temperamento é uma doença: não é preciso ter temperamento, basta ser."
João Gilberto encerra a conversa sobre a krya yoga ciente de que
há limites para explicá-la. Usa
duas citações. Uma, de Lao-tsé, o
legendário filósofo chinês:
"Quem sabe não o diz; e quem diz
não o diz". A segunda, tirada do
poema "A Mesa", de Drummond:
"Não ser feliz tudo explica".
Quarta-feira, 12 de julho
"Odete, ouve o meu lamento, lamento de um coração magoado"
-João Gilberto está abrindo o segundo show no anfiteatro Grec
com um samba de Herivelto Martins dos anos 40 que nunca gravou. Termina de cantar, Paul Berdah se aproxima e pergunta se
precisa mexer no som. Não, não é
necessário. O artista está feliz. Só
fala uma vez: "Essa é a cidade
mais bela do mundo, e eu peço a
Deus que ajude a me aproximar
dessa beleza".
Depois do show, no hotel, o artista telefona para amigos no Rio
de Janeiro e conta que o concerto
foi ótimo. Fala primeiro com o jurista Simão Isaac Benjó. Em nome
do artista, o professor Benjó está
processando a gravadora EMI-Odeon por ter adulterado a mixagem dos três primeiros discos de
João Gilberto, quando os reuniu
no CD "O Mito". Conversa em seguida com Pedro Bloch, o médico
que o ajuda a cuidar da voz.
O artista diz a Paulo Berdah que
ele deve voltar a ser dentista. "A
odontologia é a parte mais importante da medicina", sustenta. "A
boca é uma caixa acústica. Se o
dentista entende o paciente e lhe
dá o tratamento adequado, pode
fazer com que ele mude a sua postura, a sua voz, a maneira de situar-se no mundo; pode fazer
com que ele seja mais feliz."
O artista fala que irá encontrar-se na Inglaterra com Ivan Lessa,
que também não conhece pessoalmente. É admirador do jornalista radicado em Londres desde o
início dos anos 60, ao saber que,
quando lhe telefonavam e perguntavam quem estava falando,
ele respondia: "É Ivan, coitado".
"Vejam que maravilha: "Ivan,
coitado". Eu é quem deveria ter inventado isso. Vou pedir ao Ivan
para me passar o direito de criação e uso da frase."
João Gilberto encomenda o vinho que tomou no dia anterior.
Como Joaquim estava de folga,
quem vem ao quarto é um jovem
de cabelo raspado com máquina
um. Ele explica que o armário
com o Rioja especial está trancado, mas que trouxe um tão bom
quanto aquele. O atendente sai, as
garrafas são abertas, e o vinho parece estragado. O artista reclama.
O garçom lhe bate o telefone na
cara. João Gilberto volta a ligar e
dá uma bronca em quem atende o
telefone.
Pouco depois, se arrepende. Telefona uma outra vez e pede desculpas. Volta à sala, onde todos
riem, e diz, grave: "O temperamento é uma doença".
Quinta-feira, 13 de julho
O artista continua sem sair da
suíte, com as cortinas fechadas.
Mas repete que adora Barcelona.
"Que avenidas largas, que luzes,
que frisos, que povo legal. Só não
gosto muito do nome: Barcelona.
Parece meio largadona."
Ele só lê duas críticas do show.
Ri de uma na qual o articulista o
chama de "chansonnier" da Amazônia. "Vai ver que ele está me
comparando com um índio", diz.
E gosta de outra em que o crítico
se pergunta por que determinadas músicas, banais na interpretação de outros cantores e violonistas, provocam sentimentos tão
complexos quando tocadas e cantadas por João Gilberto.
Sexta-feira, 14 de julho
O avião sai de Barcelona no horário, 14h. O artista é aguardado
no aeroporto de Londres pela
baiana Maria das Graças Fish, da
embaixada brasileira. Informada
do problema com as passagens da
volta para o Brasil, já no aeroporto ela começa a dar telefonemas
para tentar resolvê-lo.
No hotel, o Great Eastern, no
centro financeiro de Londres, o
seu colchão também é mole, se
bem que menos que o de Barcelona. O artista come pouco e vai
dormir. Uma hora depois, acorda:
doem-lhe as costas.
Sábado, 15 de julho
São 9h e o artista já está de pé.
"Não consegui dormir depois que
entraram uns 40 ingleses no quarto para colocar o colchão no
chão", diz. Paul e Jacques Berdah
chegam de Paris às 13h e vão direto para o Barbican Centre, cuidar
do som. Paul tem certeza de que a
aparelhagem do teatro está ótima.
Os 2.000 ingressos para o primeiro show do artista na Inglaterra
estão esgotados há uma semana.
Às 19h, João Gilberto não respondia telefonemas nem às batidas na porta de seu quarto. Mais
de meia hora se passou e a sua suíte parecia vazia. Maria do Céu pede à gerência que arrombe a porta. Finalmente o artista abre a
porta. Estava tomando banho. Tivera dificuldade porque o ralo do
chuveiro entupira e o banheiro
inundara.
O artista sai da suíte às 20h10, 20
minutos antes do início do show.
Veste um terno Armani escuro e
gravata Versace. O concerto começou pontualmente e durou
duas horas. João Gilberto emendou uma música depois da outra
e não falou nada.
"O som era ótimo, mas eu não
tinha dormido, estava cansado",
diz o artista no hotel, inseguro
quanto à qualidade do concerto.
Na dúvida, telefona para Ivan Lessa e pergunta o que ele achou. O
jornalista lhe assegura que o show
foi espetacular, que o som não podia ser melhor.
"Ivan, eu queria a sua autorização para usar a frase do "coitado'",
diz ele a Lessa. "Assim que voltar
ao Brasil, vou comprar uma secretária eletrônica e gravar o recado: "Aqui quem fala é João, coitado.'"
Depois de mais de meia hora de
conversa, ele desliga o telefone e
fala aos amigos: "O Ivan é o máximo. Sabem o que ele respondeu
quando pedi autorização para
usar o "coitado'? Ele disse: "Pode,
João, você merece". Acho que o
"você merece" é ainda melhor que
o "Ivan, coitado.'"
Jean-Jacques Berdah lhe pergunta qual é melhor: Ary Barroso
ou Tom Jobim. "Não dá para
comparar", responde João Gilberto. "Ao ouvir o Tom, a sensação é a mesma de comer uma fruta muito gostosa." Canta três músicas de Tom Jobim e fala de Ary
Barroso: "Ele é grande, é enorme.
Do nada, ele tirou "Aquarela do
Brasil", "Rancho Fundo", tanta coisa". Canta cinco músicas dele.
Lembra que falou com Ary Barroso uma vez. Ou melhor, o ouviu. No final dos anos 50, João Gilberto, que havia lançado o LP
"Chega de Saudade", estava jantando no Fiorentina, no Rio. Ary
Barroso se aproximou da mesa e
disse ao artista: "Nunca deixe que
lhe digam o que você deve fazer e
me procure daqui a um ano se eu
ainda estiver vivo". Dito isso, Ary
Barroso se retirou.
Domingo, 16 de julho
João Gilberto acorda à tarde. Está cansado, sem condições de enfrentar a viagem de volta via Espanha. Decide ficar mais um dia em
Londres. Telefona para Maria das
Graças. Ela, que conseguira cortar
a escala em Barcelona, diz que vai
batalhar para que ele viaje direto
de Londres para o Rio.
À noite, o artista ouviu uma fita
com a gravação do concerto no
Barbican. "Foi o melhor show da
viagem", avalia. "No segundo de
Barcelona eu podia estar mais
emocionado. E no de Londres,
mais cansado. Mas não há som
como esse do Barbican. O violão
está alto, forte, redondo, e forma
um todo com a voz."
Os três shows foram um sucesso. Nos três, o artista se apresentou no horário marcado. Os três
estiveram lotados e os críticos o
elogiaram. "As exigências de João
são bem menores que a de outros
artistas", diz Jo Patton, 26, sua
produtora em Londres. "Esse folclore em torno da falta de pontualidade e profissionalismo de João
Gilberto não passam disso: folclore", diz Alfonso Fitjá. O artista suportou estoicamente as horas de
aeroporto e os colchões moles.
Mas não abriu mão da qualidade
do som.
Segunda-feira, 17 de julho
Maria das Graças conseguiu
passagens para que João Gilberto
e sua trupe voltassem para o Brasil via Paris. O artista não quer a
escala. Prefere tentar a sorte em
Londres: irá ao aeroporto e, se alguns passageiros não aparecerem, embarcará no vôo direto para o Rio.
Mas não há desistências. Maria
das Graças leva o artista para o
hotel Grosvernor. Depois de três
noites mal dormidas, ele consegue descansar direito.
Terça-feira, 18 de julho
"A Graça só me deixou quando
viu que eu estava bem, depois de
me botar na cama e cantar canções de ninar", conta o artista. "O
hotel é um escândalo. Tem até
uma varandinha onde tomei sol.
Depois, saí na rua, vieram várias
moças correndo atrás de mim e
gritando: "Moreninho! Moreninho!" Tive de voltar às pressas para o quarto".
À noite, João Gilberto escuta um
programa na rádio BBC2 dedicado à sua obra. Fica alegre, toma
um pouco de vinho e, sem tomar
conhecimento da crítica elogiosa
do "The Guardian", vai dormir.
Ontem, 19 de julho
O artista decide ficar em Londres mais uns dias. Está gostando
da cidade. Faz sol em Londres. Da
varanda de seu quarto, contempla
o Hyde Park. Pega o telefone. Vai
ligar para Maria das Graças e convidá-la para jantar com o seu marido na suíte do Grosvernor. "Estou doido para voltar ao Brasil e
contar que cortei o cabelo com o
barbeiro do rei", diz o inventor da
bossa nova. O artista João Gilberto Prado Pereira de Oliveira está
em paz.
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