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ESPETÁCULO
Atores urram em "N x W", que estréia hoje em São Paulo e cita Nietzsche e Wagner para criticar modernidade
Ópera leva Gerald Thomas ao instinto
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Urra-se muito em uma das cenas de "N x W", Nietzsche versus
Wagner. Apesar de ser uma "pocket opera" (ópera econômica, de
menor porte, sem orquestra no
fosso, por exemplo), os atores não
possuem técnica de canto lírico e
berram à vontade durante cerca
de cinco minutos. Essa passagem
diz muito sobre a nova montagem de Gerald Thomas, que estréia hoje em São Paulo.
O encenador afirma que é seu
trabalho mais instintivo, sem
compromisso com grandes teses.
Associa ao título pilares da cultura ocidental, o filósofo Friedrich
Wilhelm Nietzsche (1844-1900),
cujo centenário de morte é lembrado este ano, e o compositor Richard Wagner (1813-1883), ambos alemães, mas nem por isso vai
a fundo no seu legado intelectual.
Tampouco transforma os dois
em personagens ou se concentra
na relação que transitou da mútua
admiração à ruptura ideológica.
Nietzsche, que via em Wagner
"um revolucionário do drama
musical", ficou decepcionado por
causa da sua inclinação ao pessimismo, influenciado pela filosofia
de Schopenhauer (1788-1860).
"Nietzsche acusava Wagner de
manipular, de ser um vírus que
despertava emoções extremas,
mas não percebeu que o compositor já embutia na ópera "Tristão e
Isolda" a nota atonal (dá predominância ao ritmo e emancipa a dissonância), que depois Schoenberg usaria para criar todo o vocabulário dodecafônico do século
20", diz Thomas, 45.
"N x W" colhe as faíscas desse
atrito -"Brutus contra Júlio César", ironiza o diretor- para discutir os tempos que correm. "O
espetáculo não traz a estrutura
convencional de uma ópera, recitativa, mas tem a ver com o gênero dentro do que representa o
universo moderno ou contemporâneo", afirma. "Tem a ver com a
evasão dos valores críticos, como
observou Nietzsche; com o mundo fashion e com o faz-de-conta-que-estou-feliz da mídia."
A questão anti-semita, esta sim,
é explicitada. Mesmo morrendo
décadas antes da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), Nietzsche e
Wagner tiveram suas obras de
certa forma apropriadas por ideólogos de Hitler.
Na verdade, "N x W" configura-se como um prolongamento da
ópera "Tristão e Isolda", que Thomas montou no final de 1996, em
Weimar, na Alemanha.
"Havia piquetes do lado de fora.
Tanto os judeus quanto os simpatizantes do nazismo achavam que
era ridículo um judeu dirigir
Wagner", lembra o carioca filho
de mãe inglesa e pai alemão.
O cenário de "N x W", concebido pelo próprio Thomas, prioriza
os espaços vazios. Há uma pedra
bruta num canto, um filó (tela
transparente) subdividindo algumas cenas e uma presença marcante da luz, tudo para evocar
uma espécie de prisão.
"O palco pode ser lido como um
campo de refugiados que são forçados a acompanhar os tempos
modernos na passarela", diz.
Compositor croata
Avesso a histórias lineares, Thomas cita em cena, como premissa,
a lenda medieval de "Tristão e
Isolda", uma tragédia sobre o
amor imortal que foi transformada em ópera por Wagner.
Os refugiados são esses Tristãos
e Isoldas que desfilam pelo palco.
Os personagens surgem com
mais ênfase na ária "Liebestod", o
solo no qual Wagner traduz o momento em que Isolda toma Tristão nos braços, morto.
Aqui, o encenador provoca
mais um estranhamento: troca a
soprano (voz feminina mais aguda) da ária original por um barítono (voz média entre o tenor e o
baixo). Paulo Szot, 31, não imaginava interpretar o solo de Isolda
em sua carreira. "É uma proposta
ousada e desafiadora", diz.
A música, claro, é vital em "N x
W". São executados trechos da
partitura original de Wagner,
adaptados pelo pianista Marcelo
de Jesus, além de composições
criadas por Arrigo Barnabé e pelo
croata Borut Krzisnik, que conheceu Thomas em 1999, durante a
participação de "Nowhere Man"
no Festival Internacional de Teatro de Zagreb, na Croácia.
Em entrevista à Folha, por e-mail, Krzisnik afirma que, ao ver a
peça de Thomas sem som, "ouviu
música". "Finalmente, poderei
"ver" com o que minha música se
parece", afirma Krzisnik, 39. Ele
acompanhará a estréia em SP.
"Esse cara vai enterrar muita
gente, e olha que já trabalhei com
o compositor norte-americano
Philip Glass", compara Thomas.
Antes, porém, ele conheceu o talento de Krzisnik para a carpintaria de cenário em "Nowhere
Man". De volta ao Brasil, surpreendeu-se com a qualidade do
CD que o músico enviou com as
composições para "N x W".
O figurino é do estilista Walter
Rodrigues. O artista plástico Guto
Lacaz assina os objetos de cena.
Thomas encenou 18 óperas, a
maioria delas no exterior. A primeira, "O Navio Fantasma",
montada no Rio em 1987, não por
acaso era de Wagner.
Quando encontra liberdade para driblar as estruturas rígidas do
gênero com o qual batizou sua
Cia. de Ópera Seca -como agora,
no projeto Pocket Opera do Sesc
Ipiranga-, ele diz "se expressar
melhor como um compositor que
dirige do que como um dramaturgo que também dirige".
Espetáculo: N x W
Concepção e direção: Gerald Thomas
Com: Cia. de Ópera Seca (Amadeo Lamounier, Bruce Gomlevsky, Dominic
Barter, Marcelo Boschar e outros)
Quando: estréia hoje, às 21h; de qui. a sáb., às 21h; dom., às 20h. Até 6/8
Onde: Sesc Ipiranga - teatro (r. Bom Pastor, 822, tel. 0/xx/11/3340-2000)
Quanto: R$ 12
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