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Antunes retoma o Brasil com Suassuna
Após tragédias gregas, diretor adapta o
romance brasileiro "A Pedra do Reino"
Projeto surgiu na década
de 80, mas teve de superar
a resistência do escritor
paraibano, que temia um
espetáculo autobiográfico
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
"Voltei ao meu velho estilo",
avisa Antunes Filho. Ele interrompe um ciclo de tragédias
gregas (Sófocles e duas vezes
Eurípides, montados desde
1999) e reabre as entranhas do
Brasil real da literatura, para citar Machado de Assis, com a
teatralização do romance "A
Pedra do Reino", de Ariano
Suassuna.
O sonho cultivado e adiado
desde os anos 80 é materializado hoje, com o seu grupo Macunaíma, braço do CPT (Centro
de Pesquisa Teatral do Sesc),
em pré-estréia no teatro Anchieta, em São Paulo. A temporada começa amanhã.
A ponte livro-palco aparece
aqui e ali na carreira do diretor,
como divisor de águas: em "Macunaíma" (1978), da obra homônima de Mário de Andrade,
e em "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" (1986), de João
Guimarães Rosa. O
último fio-terra
com o país, por assim dizer, foi a peça
"Vereda da Salvação" (1993), de Jorge Andrade.
Ao visitar tal universo, Antunes, 76,
diz que se deixa levar pelo espírito
moleque. "Comigo
o Brasil flui, posso
abrir meu coração,
não tem esforço como na tragédia grega. É fechar os olhos
e a coisa sai; é epidérmico."
Mas às vezes deixa hematomas, como na peleja com
Suassuna para convencê-lo da idéia.
Desde o início, há
pelo menos 20 anos,
era intenção de Antunes tomar por base o "Romance d'A
Pedra do Reino e o
Príncipe do Sangue
do Vai-e-Volta" (1971) e sua
continuação, "História d'O Rei
Degolado nas Caatingas do Sertão - Ao Sol da Onça Caetana"
(1977).
Quase biografia
Ocorre que, nessa que seria a
primeira parte da continuação
de "A Pedra do Reino", Suassuna, 79, se deu conta de que havia cometido um erro de apreciação. "Se você ler os dois livros, verá que o [personagem
protagonista] Quaderna que
aparece no segundo não é o
mesmo do primeiro. Queria fazer um personagem que de certa forma encarnasse o povo
brasileiro, e ali ele estava mais
reduzido à história pessoal de
Ariano Suassuna. Eu parei o
projeto por causa disso, mas
não avisei o Antunes", afirma.
Quando o diretor tentou surpreendê-lo com a boa-nova, a
teatralização pendia justamente para o lado biográfico do qual
Suassuna fugia como o diabo da
cruz. Trocaram cartas de zanga.
Só retomaram o assunto -e a
paz- nestes anos 2000, quando Suassuna leu num jornal de
Brasília que Antunes ainda acalentava encenar "A Pedra do
Reino" e lhe deu carta branca.
"Ele [Suassuna] não é o Quaderna, mas tem muito do Quaderna. É nesse limite que esbarram certos problemas",
afirma Antunes, que manteve a
junção dos dois livros.
Utopias
Brasileiro e sertanejo, o narrador atravessa os dois romances oscilando faces de rei e palhaço, de dor e humor que rimam tragicidade. Se Macunaíma é o arquétipo do herói sem
caráter, Quaderna é o herói
movido pelo moinho da utopia,
devagar e sempre.
Como nesse trecho substancial da lavra de Suassuna: "Eu,
ao montar no meu cavalo Pedra-Lispe, ao colocar na minha
pobre cabeça a minha pobre coroa de flandre de palhaço e de
rei -eu galopo também pelas
estradas e descaminhos desse
meu reino e Castelo da Raça
Brasileira, e oponho, assim, às
misérias, feiúras e tristezas da
vida real, a galope livre do sonho e da desaventura, sentido-me ir, como um Dom Sebastião,
talvez grotesco mas indomável,
ao encontro de Deus, de meu
Povo e da sagrada Morte Caetana- ao encontro da morte que
me imortalizará".
Quem o interpreta é o ator de
nome artístico e próprio Lee
Thalor, 22, que faz sua estréia
profissional após
cursar o CPT. Nascido em Goiás, ele
diz identificar-se
com os traços regional e universal da
obra.
Existem mais 19
intérpretes, a maioria em seu primeiro
trabalho com Antunes. O grupo assume a direção musical, canta e toca. O
palco surge praticamente nu, como a
mente do protagonista a ser preenchida por peripécias.
Os figurinos e adereços foram criados
para remeter à memória a às invenções de Quaderna,
por meio de uma
pesquisa que inclui
a história política da
Paraíba e do Nordeste coronelista da
década de 30. Há citações ainda à Coluna Prestes, ao Cangaço, à Revolução de 30, enfim, ao início da
Era Vargas.
O maior desafio, diz Antunes,
é equilibrar os tons picarescos e
dramáticos que às vezes não se
comportam. Nas entrelinhas,
ambiciona a montagem como
espelho crítico "diante da imoralidade que presenciamos na
política e na atitude de alguns
brasileiros". Leia-se corrupção.
Em sincronicidade, como diria Jung, referência obrigatória
para o diretor, o teatro abraça
duas epopéias: Zé Celso com
"Os Sertões" e Antunes com "A
Pedra do Reino" (ele assistiu a
uma das partes no Oficina e
saiu revigorado).
"Se eu pudesse escolher um
patrono para a minha carreira
de escritor, seria Euclydes da
Cunha. É como se "Os Sertões"
fosse o Velho Testamento e "A
Pedra do Reino", pelo menos na
minha intenção, um Novo Testamento, uma herança de "Os
Sertões'", afirma Suassuna.
A PEDRA DO REINO
Quando: pré-estréia hoje, às 21h,
para convidados; temporada começa a partir de amanhã; sex. e sáb., às
21h, e dom., às 19h
Onde: Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, tel. 0/xx/11/3234-3000)
Quanto: R$ 10 a R$ 20
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