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NINA HORTA
Guimarães Rosa mora lá em casa
Como podia querer dela o que não tinha? Não é alemã nem russa, é deste Brasil de fronteiras difíceis de cruzar
NO COMEÇO , pensei que ela
fosse surda ou boba, ou surda e boba ao mesmo tempo.
Não respondia e, de repente, aparecia do meu lado sem fazer barulho,
que nem índio. Uma cabeleira de
crente sem ser crente, muito limpa.
Às cinco horas, banho tomado, cabelo preto rebrilhando. Não me entendia e me entende pouco até hoje. Fui
agüentando...
"A senhora quer auga?" Gente, a
mulher que não sabia de nada me
oferecendo alga como um sushiman? Eu também não entendia nada, pior que ela. Se queria maracujá
com cabronato, tijolo feito com
mandioca, ou uma farofa de feijão de
arranca.
Afinal eu percebi, ela já percebera
há muito tempo, que éramos de tribos ou shoppings diferentes. Fui ficando meio sem graça, como podia
querer dela o que não tinha, o que
nunca havia visto? Afinal, não é alemã nem russa, é deste Brasil mesmo
de fronteiras difíceis de cruzar. Por
que essa coisa de querer prender as
pessoas num mundo pequeno? Há
que se arranjar um jeito de vivermos
juntas. Ela, pior que eu, incrédula
com meus usares.
"De manhã é assim. Um pratinho
maior, um pires e uma xícara." (E
como me deu sede, eu peguei meu
copo de corno lavrado, que não quebra nunca, e fomos apanhar água
num poço...)
Pedi que fosse ao supermercado e
comprasse umas lasanhas e pizzas
prontas, um estrogonofe. Eu iria comer no trabalho, ela não precisava
cozinhar, era só esquentar no microondas. Não foi comprar. Quando
alguém trouxe, não comeu (... Tinha
uma venda de roça, no começo do
cerradão. Vendiam licor de banana e
de pequi, muito forte, geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho... A tanto, mesmo sem fome,
providenciei para mim uma jacuba,
no come-calado... A saudade minha
maior era uma comidinha guisada:
um frango com quiabo e abóbora-d'água e caldo, um refogado de caruru com ofa de angu... De feijão, carne-seca, arroz, Maria-Gomes e angu...)
"Mas você chegou a esta idade
sem saber arrumar uma cama? Primeiro, este lençol com elástico é para forrar o colchão, depois este, que é
para forrar o lençol que forra o colchão, e depois este outro, que é para
cobrir a gente." Ela ria baixinho, me
olhando bem no olho e eu não percebia que a ridícula era eu. "- E como
você dormia?"
"Numa cama de vara de vaqueta,
colchão de junco que a gente mesmo
fazia, a roupa de cama de argodão,
feita por minha mãe mesmo na carrentilha, depois começou uns cobertorzinho marrom, drombém..."
"Drombém? Mas isto é marca? Ou
é nome de lã?"
"Sei não. Acho que no frio o argodão não dava conta e com os cobertor a gente drombém" (dorme bem,
entendi.)
Não é lá um Guimarães Rosa, não
leva jeito de Diadorim, mas... (Pessoa limpa pensa limpo. Eu acho.)
Vê muita Coca-Cola e água-de-coco de caixinha, mas não chega perto.
(Acinte bebi água de dentro dum
gravatá em flor.)
Ela, o marido e os filhos estão aqui
para trabalhar e ganhar dinheiro e
voltar para o sertão. De vez em
quando, ele falta 15 dias no serviço e
vai correndo dar uma empurrada na
casa que está fazendo. (... Me descansei, comi uma coalhada muito
fria. Comi bolo com cidrão. Bebi
bom café...) "E como anda a casa?"
Fica de olho parado e até eu enxergo
(O comum: essas garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato verde, o pato preto, topetudo;
marrequinhos dançantes; martim-pescador; mergulhão; e até uns urubus, com aquele triste preto que
mancha...)
Temos que inventar um jeito de
convivência, alargar os mundos estreitos. (Amigos somos, nonada...
Existe é homem humano. Travessia.)
ninahorta@uol.com.br
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