São Paulo, quinta-feira, 20 de julho de 2006

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NINA HORTA

Guimarães Rosa mora lá em casa

Como podia querer dela o que não tinha? Não é alemã nem russa, é deste Brasil de fronteiras difíceis de cruzar

NO COMEÇO , pensei que ela fosse surda ou boba, ou surda e boba ao mesmo tempo. Não respondia e, de repente, aparecia do meu lado sem fazer barulho, que nem índio. Uma cabeleira de crente sem ser crente, muito limpa. Às cinco horas, banho tomado, cabelo preto rebrilhando. Não me entendia e me entende pouco até hoje. Fui agüentando...
"A senhora quer auga?" Gente, a mulher que não sabia de nada me oferecendo alga como um sushiman? Eu também não entendia nada, pior que ela. Se queria maracujá com cabronato, tijolo feito com mandioca, ou uma farofa de feijão de arranca.
Afinal eu percebi, ela já percebera há muito tempo, que éramos de tribos ou shoppings diferentes. Fui ficando meio sem graça, como podia querer dela o que não tinha, o que nunca havia visto? Afinal, não é alemã nem russa, é deste Brasil mesmo de fronteiras difíceis de cruzar. Por que essa coisa de querer prender as pessoas num mundo pequeno? Há que se arranjar um jeito de vivermos juntas. Ela, pior que eu, incrédula com meus usares.
"De manhã é assim. Um pratinho maior, um pires e uma xícara." (E como me deu sede, eu peguei meu copo de corno lavrado, que não quebra nunca, e fomos apanhar água num poço...)
Pedi que fosse ao supermercado e comprasse umas lasanhas e pizzas prontas, um estrogonofe. Eu iria comer no trabalho, ela não precisava cozinhar, era só esquentar no microondas. Não foi comprar. Quando alguém trouxe, não comeu (... Tinha uma venda de roça, no começo do cerradão. Vendiam licor de banana e de pequi, muito forte, geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho... A tanto, mesmo sem fome, providenciei para mim uma jacuba, no come-calado... A saudade minha maior era uma comidinha guisada: um frango com quiabo e abóbora-d'água e caldo, um refogado de caruru com ofa de angu... De feijão, carne-seca, arroz, Maria-Gomes e angu...)
"Mas você chegou a esta idade sem saber arrumar uma cama? Primeiro, este lençol com elástico é para forrar o colchão, depois este, que é para forrar o lençol que forra o colchão, e depois este outro, que é para cobrir a gente." Ela ria baixinho, me olhando bem no olho e eu não percebia que a ridícula era eu. "- E como você dormia?"
"Numa cama de vara de vaqueta, colchão de junco que a gente mesmo fazia, a roupa de cama de argodão, feita por minha mãe mesmo na carrentilha, depois começou uns cobertorzinho marrom, drombém..."
"Drombém? Mas isto é marca? Ou é nome de lã?"
"Sei não. Acho que no frio o argodão não dava conta e com os cobertor a gente drombém" (dorme bem, entendi.)
Não é lá um Guimarães Rosa, não leva jeito de Diadorim, mas... (Pessoa limpa pensa limpo. Eu acho.) Vê muita Coca-Cola e água-de-coco de caixinha, mas não chega perto. (Acinte bebi água de dentro dum gravatá em flor.)
Ela, o marido e os filhos estão aqui para trabalhar e ganhar dinheiro e voltar para o sertão. De vez em quando, ele falta 15 dias no serviço e vai correndo dar uma empurrada na casa que está fazendo. (... Me descansei, comi uma coalhada muito fria. Comi bolo com cidrão. Bebi bom café...) "E como anda a casa?"
Fica de olho parado e até eu enxergo (O comum: essas garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato verde, o pato preto, topetudo; marrequinhos dançantes; martim-pescador; mergulhão; e até uns urubus, com aquele triste preto que mancha...)
Temos que inventar um jeito de convivência, alargar os mundos estreitos. (Amigos somos, nonada... Existe é homem humano. Travessia.)


ninahorta@uol.com.br

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