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CARLOS HEITOR CONY
Seja você mesmo um teatrólogo
Nunca escrevi para teatro; a experiência na matéria é a mesma que tenho na física quântica
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ENTRE AS maravilhas da internet, destaca-se a abundância
das informações nem sempre
necessárias (cotação da juta no mercado de Hong Kong, temperatura
em declínio nas Papuas), e freqüentemente equivocadas.
Vai daí, recebo dramático apelo de
um cidadão que não sei como descobriu meu endereço eletrônico e me
mandou e-mail declarando que desejava escrever peças teatrais e recorria a mim, certo de que com a minha experiência eu poderia indicar o
caminho do sucesso.
Acontece que nunca escrevi para
teatro, de maneira que a minha experiência na matéria é a mesma que
tenho na física quântica e na culinária dos esquimós.
Até mesmo sou um espectador relapso, houve tempo em que freqüentava as peças em cartaz, até mesmo
com entusiasmo, como no caso de
"Os Pequenos Burgueses" na direção antológica do Zé Celso. Foram
momentos, raros por sinal.
Mas dar conselho não custa quase
nada. Se vou pouco às casas de espetáculo, sou leitor constante de textos
teatrais e sei mais ou menos por alto
como andam as coisas no setor.
Em primeiríssimo lugar, o autor
deverá optar entre um teatro participante ou alienado.
Antes do golpe de abril de 1964, os
participantes tinham maior bilheteria e melhores aplausos da crítica.
Hoje, a situação está mais ou menos
invertida -e em teatro há eventos
invertidos. Participante ou não, é fácil adaptar a sua peça futura -e mesmo a sua obra pregressa- ao gosto
da situação.
Tire as referências à reforma agrária, à autodeterminação dos povos, à
remessa de lucros, ao clamor pela liberdade e enxerte um pouco de
meio ambiente, psicanálise e, se
possível, um analista.
Também faz efeito uma digressão
sobre a decadência das fórmulas ocidentais. Com habilidade, você será
capaz de criar uma confusão no público e na crítica, e todos ficarão contentes, pois você será napolitanamente meio a meio: participante e
alienado. Aliás, a intromissão de um
analista é sempre eficaz. Ele pode
comparecer em carne e osso, mas o
melhor recurso é fazer referências a
ele: "Ainda ontem o meu analista dizia que...".
Antigamente, um drama sem marido, mulher e amante não era levado nem a sério, nem ao palco. Hoje, o
amante foi substituído pelo analista.
É o "tertius" onipresente e onisciente. Faça o marido possuir uma
fixação materna, a mulher tomar
bolinhas para dormir, introduza o
analista no meio disso tudo -e eis o
drama.
Cuidado, porém, com o diretor. O
diretor é um péssimo caráter sempre disposto a estragar o caráter de
seus personagens. Se você faz uma
mocinha chegar em cena e dizer:
"Está lá fora o inspetor do gás", o diretor fará a mocinha dizer isso embaixo de um sofá ou em cima do armário.
Aliás, por falar em armário, armário não mais! Ninguém usa mais armário em cena. Outrora, o armário
era indispensável para esconder o
amante ou o marido, conforme as
contingências dramáticas do enredo. Hoje, com a abolição dos amantes em cena, os armários foram
igualmente abolidos.
Em todo o caso, é bom colocar na
peça um armário fictício, que não
existirá cenicamente. Em certo momento, a mulher dirá: "Olhe aí dentro do armário, tire a minha bolsa de
couro".
O marido irá ao canto e fingirá que
está abrindo um armário. Essa sutil
operação é muito útil, pois será, ao
fim das contas e da peça, a única coisa que a platéia entenderá.
E todos se sentirão inteligentes
-autor, diretor, atores e, principalmente, público. Este se sentirá pago
pelo preço do ingresso, pois sairá do
teatro entendendo alguma coisa.
Outro detalhe. Espalhe, estrategicamente, que vai escrever uma peça
sobre alguém conhecido. Não precisa entrar em pormenores, basta dizer tibiamente: "Acho que vou aproveitar alguma coisa da vida do Vinicius de Moraes na minha próxima
peça".
Diga, e vá dormir tranqüilo. Ainda
que o herói de sua próxima peça seja
um otorrinolaringologista búlgaro,
no dia da estréia, você verá entrar
em cena um sujeito de jeans, camisa
vermelha, cabelos grisalhos, óculos
escuros, copo de uísque na mão e um
violão debaixo do braço.
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