São Paulo, sexta-feira, 20 de julho de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Seja você mesmo um teatrólogo


Nunca escrevi para teatro; a experiência na matéria é a mesma que tenho na física quântica

ENTRE AS maravilhas da internet, destaca-se a abundância das informações nem sempre necessárias (cotação da juta no mercado de Hong Kong, temperatura em declínio nas Papuas), e freqüentemente equivocadas.
Vai daí, recebo dramático apelo de um cidadão que não sei como descobriu meu endereço eletrônico e me mandou e-mail declarando que desejava escrever peças teatrais e recorria a mim, certo de que com a minha experiência eu poderia indicar o caminho do sucesso.
Acontece que nunca escrevi para teatro, de maneira que a minha experiência na matéria é a mesma que tenho na física quântica e na culinária dos esquimós.
Até mesmo sou um espectador relapso, houve tempo em que freqüentava as peças em cartaz, até mesmo com entusiasmo, como no caso de "Os Pequenos Burgueses" na direção antológica do Zé Celso. Foram momentos, raros por sinal.
Mas dar conselho não custa quase nada. Se vou pouco às casas de espetáculo, sou leitor constante de textos teatrais e sei mais ou menos por alto como andam as coisas no setor.
Em primeiríssimo lugar, o autor deverá optar entre um teatro participante ou alienado.
Antes do golpe de abril de 1964, os participantes tinham maior bilheteria e melhores aplausos da crítica. Hoje, a situação está mais ou menos invertida -e em teatro há eventos invertidos. Participante ou não, é fácil adaptar a sua peça futura -e mesmo a sua obra pregressa- ao gosto da situação.
Tire as referências à reforma agrária, à autodeterminação dos povos, à remessa de lucros, ao clamor pela liberdade e enxerte um pouco de meio ambiente, psicanálise e, se possível, um analista.
Também faz efeito uma digressão sobre a decadência das fórmulas ocidentais. Com habilidade, você será capaz de criar uma confusão no público e na crítica, e todos ficarão contentes, pois você será napolitanamente meio a meio: participante e alienado. Aliás, a intromissão de um analista é sempre eficaz. Ele pode comparecer em carne e osso, mas o melhor recurso é fazer referências a ele: "Ainda ontem o meu analista dizia que...".
Antigamente, um drama sem marido, mulher e amante não era levado nem a sério, nem ao palco. Hoje, o amante foi substituído pelo analista.
É o "tertius" onipresente e onisciente. Faça o marido possuir uma fixação materna, a mulher tomar bolinhas para dormir, introduza o analista no meio disso tudo -e eis o drama.
Cuidado, porém, com o diretor. O diretor é um péssimo caráter sempre disposto a estragar o caráter de seus personagens. Se você faz uma mocinha chegar em cena e dizer: "Está lá fora o inspetor do gás", o diretor fará a mocinha dizer isso embaixo de um sofá ou em cima do armário.
Aliás, por falar em armário, armário não mais! Ninguém usa mais armário em cena. Outrora, o armário era indispensável para esconder o amante ou o marido, conforme as contingências dramáticas do enredo. Hoje, com a abolição dos amantes em cena, os armários foram igualmente abolidos.
Em todo o caso, é bom colocar na peça um armário fictício, que não existirá cenicamente. Em certo momento, a mulher dirá: "Olhe aí dentro do armário, tire a minha bolsa de couro".
O marido irá ao canto e fingirá que está abrindo um armário. Essa sutil operação é muito útil, pois será, ao fim das contas e da peça, a única coisa que a platéia entenderá.
E todos se sentirão inteligentes -autor, diretor, atores e, principalmente, público. Este se sentirá pago pelo preço do ingresso, pois sairá do teatro entendendo alguma coisa.
Outro detalhe. Espalhe, estrategicamente, que vai escrever uma peça sobre alguém conhecido. Não precisa entrar em pormenores, basta dizer tibiamente: "Acho que vou aproveitar alguma coisa da vida do Vinicius de Moraes na minha próxima peça".
Diga, e vá dormir tranqüilo. Ainda que o herói de sua próxima peça seja um otorrinolaringologista búlgaro, no dia da estréia, você verá entrar em cena um sujeito de jeans, camisa vermelha, cabelos grisalhos, óculos escuros, copo de uísque na mão e um violão debaixo do braço.


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