São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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comentário

Comediante unia talento e coragem

AGILDO RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se Monteiro Lobato fosse vivo, com certeza já estaria adaptado à irreverência ao extremo, pornográfica até, no bom sentido, cáustica e individualista de nossos tempos. E a boneca Emília do século 21 teria, com certeza, o perfil de Dercy Gonçalves.
Ou talvez Dercy fosse uma Emília nos padrões atuais de humor, sarcasmo, inteligência e, principalmente, talento criativo. Felizmente, pertenço às duas gerações: à de "Sítio do Pica-Pau Amarelo" e à de "O Bordel de Dercy".
Bordel que amamos, no qual nos divertimos, com que aprendemos e, sem dúvida, que respeitamos.
Pois Dercy era um gênio autêntico. Importa muito o que ela falava, fosse em qualquer setor de nossa vida pública, e mais ainda o que ela fazia, nos últimos anos, com uma performance e um vigor de dar inveja.
Em depoimento à Folha na década de 90, afirmou: "Não tenho doença, não tenho dores, não tenho saudade de nada nem de ninguém. Não tenho ódio, não tenho amor, nunca fui apaixonada.
Sou livre. Não tem outra igual a mim! Ninguém tem mais moral do que eu".
Aí ela é igual à Emília de Monteiro Lobato, que afirmava: "Não tenho ódio nem amor, sou livre e não tenho medo de nada, porque sou boneca de pano com macela por dentro. Qualquer "desastre", a Tia Anastácia me faz outra".
A diferença é que não se faz outra Dercy. Nunca mais, da boca de ninguém, se ouvirá: "Não saio sem dentadura, pestana e peruca".
Afirmação de uma coragem única numa artista como ela, que pode dispensar esses detalhes, porque sai com aquilo que é o maior presente que Deus lhe deu: seu imenso e inconfundível talento.
Ela, como todo humorista, era o desabafo do povo, a alegria de todos aqueles que a ouviam, embevecidos, porque ao povo não é dado o direito de dizer francamente aquilo que pensa... e ela podia. Podia e devia. Estava, como sempre esteve, acima do bem e do mal.
Atuando nas mesmas áreas -teatro, filmes e TV-, nunca tive a oportunidade de contracenar com ela. Mas vi quase tudo o que fez e aprendi. Imito-a em quase todos os meus shows e programas de TV.
Nesses momentos, "incorporo" a figura dela e isso me dá uma imensa satisfação. É uma homenagem que tento fazer.
Não conheço a cidade de Santa Madalena, no Rio, onde em 23 de junho de 1907 nasceu Dercy. Um dia vou reverenciar a terra que produziu esse gênio. Quero "viajar" no berço da estrela que dividiu com Oscarito a revista, "Quero Ver isso de Perto", a que assisti umas 20 vezes no teatro Carlos Gomes. Pois ali estavam os dois que muito trabalho deram para a censura da época.
Ri, como sempre riu com ela todo o país. Como sempre riu e riem várias gerações beneficiadas pela arte incomparável dessa deusa do humor.


AGILDO RIBEIRO é ator e humorista


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