São Paulo, terça-feira, 20 de julho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.

CRÍTICA TRAGÉDIA

Retraduzida, "Medeia" é mais cruel e poética

Ao acentuar musicalidade dos versos, tradução de Trajano Pereira intensifica potência do clássico de Eurípides

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A feiticeira Medeia é uma das homicidas mais lúcidas de todos os tempos. Traída por Jasão, seu marido, ela responde à infâmia com uma infâmia pior ainda.
Assassina o rei de Corinto e sua filha, com quem Jasão planejava se unir. Em seguida, para coroar a vingança, apunhala os dois filhos que teve com o marido.
Esse infanticídio frio e premeditado transcende os limites da tragédia de Eurípides, imortalizando-a. Em vida, Eurípides (480-406 a.C.) não foi um dramaturgo muito popular. Não seguia as regras, inovava demais, e isso era malvisto.
Com a tetralogia que incluía "Medeia", ficou em terceiro e último lugar no concurso das Grandes Dionísias de 431 a.C. Perdeu para Sófocles (segundo colocado) e para o hoje esquecido Euforion (primeiro). Eurípides é o exemplo clássico do artista incompreendido em vida.
Além de colocar no palco uma assassina dos próprios filhos, outra transgressão: no final da peça, a infanticida não é punida; ela vence. Medeia sobe no carro de seu avô, o Sol, e parte para Atenas, onde será acolhida pelo rei Egeu.
A real dimensão dessa dissonância só é reconhecível se imaginarmos, por exemplo, personagens como Raskólnikov e Emma Bovary triunfando. Ele escapando impune de seu crime e ela não se suicidando por remorso.
Na tradução mais recente de "Medeia", realizada por Trajano Vieira, salta aos ouvidos a música dos decassílabos e dos versos livres. Assonâncias, aliterações e outros engenhosos expedientes prosódicos são convocados para intensificar a crueldade e a poesia da trama. A edição é bilíngue, com textos de apoio que iluminam os critérios propostos.
Trajano é professor de língua e literatura grega na Unicamp. Colaborou com Haroldo de Campos na festejada tradução da "Ilíada" e tem se dedicado a verter as tragédias gregas.
Já foram traduzidas por ele "Prometeu Prisioneiro", de Ésquilo, e "Édipo Rei", de Sófocles, entre outras peças. Sua versão do "Agamêmnon", de Ésquilo, recebeu o Prêmio Jabuti de tradução.
Alguns estudiosos do teatro grego apontam certa incoerência na trama de "Medeia". Por que a protagonista não assassina Jasão? Por que ela não se vinga diretamente do marido desleal? Resposta plausível: Medeia é a mulher que representa todas as mulheres e Jasão é o homem que representa todos os homens.
Os outros são apenas munição numa disputa entre o feminino e o masculino. É costume dizer que, nas tragédias de Eurípides, os heróis não estão representando coletividades, mas indivíduos. Talvez.
Ao assassinar os próprios filhos, além do rei Creon e sua filha, Medeia está defendendo uma posição ética e coletiva. Nesse tabuleiro antigo, os assassinatos dão um recado aos maridos infiéis: cuidado, nenhuma deslealdade passará impune.


NELSON DE OLIVEIRA é autor de "Poeira: Demônios e Maldições" (Língua Geral), entre outros



MEDEIA

AUTOR Eurípides
TRADUÇÃO Trajano Vieira
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 34 (192 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo



JOÃO PEREIRA COUTINHO
O colunista está em férias




Texto Anterior: Cinema/Comédia dramática: "5 x Favela" escapa do politicamente correto
Próximo Texto: Show marca 90 anos de Elizeth Cardoso
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.