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CRÍTICA TRAGÉDIA
Retraduzida, "Medeia" é mais cruel e poética
Ao acentuar musicalidade dos versos, tradução de Trajano Pereira intensifica potência do clássico de Eurípides
NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A feiticeira Medeia é uma
das homicidas mais lúcidas
de todos os tempos. Traída
por Jasão, seu marido, ela
responde à infâmia com uma
infâmia pior ainda.
Assassina o rei de Corinto
e sua filha, com quem Jasão
planejava se unir. Em seguida, para coroar a vingança,
apunhala os dois filhos que
teve com o marido.
Esse infanticídio frio e premeditado transcende os limites da tragédia de Eurípides,
imortalizando-a. Em vida,
Eurípides (480-406 a.C.) não
foi um dramaturgo muito popular. Não seguia as regras,
inovava demais, e isso era
malvisto.
Com a tetralogia que incluía "Medeia", ficou em terceiro e último lugar no concurso das Grandes Dionísias
de 431 a.C. Perdeu para Sófocles (segundo colocado) e para o hoje esquecido Euforion
(primeiro). Eurípides é o
exemplo clássico do artista
incompreendido em vida.
Além de colocar no palco
uma assassina dos próprios
filhos, outra transgressão: no
final da peça, a infanticida
não é punida; ela vence. Medeia sobe no carro de seu
avô, o Sol, e parte para Atenas, onde será acolhida pelo
rei Egeu.
A real dimensão dessa dissonância só é reconhecível se
imaginarmos, por exemplo,
personagens como Raskólnikov e Emma Bovary triunfando. Ele escapando impune de
seu crime e ela não se suicidando por remorso.
Na tradução mais recente
de "Medeia", realizada por
Trajano Vieira, salta aos ouvidos a música dos decassílabos e dos versos livres.
Assonâncias, aliterações e
outros engenhosos expedientes prosódicos são convocados para intensificar a
crueldade e a poesia da trama. A edição é bilíngue, com
textos de apoio que iluminam os critérios propostos.
Trajano é professor de língua e literatura grega na Unicamp. Colaborou com Haroldo de Campos na festejada
tradução da "Ilíada" e tem se
dedicado a verter as tragédias gregas.
Já foram traduzidas por ele
"Prometeu Prisioneiro", de
Ésquilo, e "Édipo Rei", de Sófocles, entre outras peças.
Sua versão do "Agamêmnon", de Ésquilo, recebeu o
Prêmio Jabuti de tradução.
Alguns estudiosos do teatro grego apontam certa incoerência na trama de "Medeia". Por que a protagonista
não assassina Jasão?
Por que ela não se vinga diretamente do marido desleal? Resposta plausível: Medeia é a mulher que representa todas as mulheres e Jasão é
o homem que representa todos os homens.
Os outros são apenas munição numa disputa entre o
feminino e o masculino.
É costume dizer que, nas
tragédias de Eurípides, os heróis não estão representando
coletividades, mas indivíduos. Talvez.
Ao assassinar os próprios
filhos, além do rei Creon e
sua filha, Medeia está defendendo uma posição ética e
coletiva. Nesse tabuleiro antigo, os assassinatos dão um
recado aos maridos infiéis:
cuidado, nenhuma deslealdade passará impune.
NELSON DE OLIVEIRA é autor de "Poeira:
Demônios e Maldições" (Língua Geral),
entre outros
MEDEIA
AUTOR Eurípides
TRADUÇÃO Trajano Vieira
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 34 (192 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
JOÃO PEREIRA COUTINHO
O colunista está em férias
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