São Paulo, sábado, 20 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Roubaud e o silêncio de Orfeu

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

"Algo : Preto" apresenta aos brasileiros a obra de Jacques Roubaud, antes confinada a exemplos esparsos em antologias e revistas. Se não se trata de um livro típico do poeta, é dessa estranheza em meio ao percurso que brota sua maior força lírica.
Nascido em 1932, Roubaud fincou as estacas de sua obra na pesquisa de estruturas que aliam um profundo conhecimento da história das formas poéticas (dos trovadores, passando pela poesia tradicional japonesa, até a persistência inconsciente do alexandrino em meio ao verso livre) à exploração da uma modalidade própria de liberdade que a arquitetura dos números, transposta à esfera verbal, propicia.
Poeta, matemático e ensaísta, compondo ao lado de Michel Déguy e Yves Bonnefoy, a trinca mais respeitada de poetas hoje atuantes na França, Roubaud faz parte do OuLiPo, a "Oficina de Literatura Potencial", que, na esteira de nomes como Raymond Queneau e Georges Perec, multiplica por -1 a arbitrariedade das convenções formais que sustentam toda literatura.
Voluntariamente abraçados e trabalhados, esses artifícios fundadores passariam de limites do acaso a balizas auto-impostas na livre invenção de novos mundos. Assim, "Trinta e Um ao Cubo" (1973), por exemplo, reúne 31 poemas de 31 versos e 31 sílabas, casando o admirador do haicai ao mestre da lógica, fantasia lúdica a rigor.
Nesse mundo de pureza formal e jogo inventivo, aparentemente refratário à história, "Algo: Preto" destoa. É um poema "sujo" de vida, motivado por uma experiência biográfica decisiva: a morte de sua mulher, a fotógrafa Alix Cleo Roubaud, em 1985.
Longo poema, ou reunião de poemas, seccionado em nove partes, cada uma composta de nove poemas, "Algo: Preto" é uma tentativa de lidar com os limites do tempo, da palavra e do amor, num registro que, sem incorrer no sentimentalismo e no patético, não deixa de afirmar as raízes da lírica moderna numa subjetividade fraturada.

Persistência
A palavra cassada pela dor e pelo nada, as imagens subitamente estáticas, contrastadas ao tempo que escoa, fazem parte de uma equação que não deixa de ser a de Orfeu: como seguir habitando um mundo (inclusive o da linguagem) em que de dois resta apenas um? O choque e o estranhamento que a visão da morte -coisa em si, irreversível, encapsulada no corpo morto- e a persistência do cotidiano, transcorrendo, indiferente, suspendem a eficácia da própria poesia: imagem (Alix era fotógrafa), nome, tudo é provisoriamente máquina emperrada, cadáver ou coisa inerte, observada de fora.
O trabalho de luto consiste, aqui, em fortalecer-se para não mais desviar o olhar ("eu queria ser o único no mundo a não ter visto"), encarar a morte, imiscuída na materialidade do dia-a-dia, e dela participar: "Quando tua morte se acabar, eu estarei morto". O curto-circuito da experiência insufla no jogo das formas de Roubaud paralisia provisória, afasia que, ao quebrar provisoriamente a segurança das regras, pede para ser vencida, conferindo-lhe um novo grau de verdade humana.
Por caprichos da memória, lembrei-me de alguns poemas de Gottfried Benn (1886-1956), também escritos sob o impacto de um casal dividido pela morte e incluídos nos seus "Poemas Estáticos", coletânea de 1948. Neles, também Orfeu, e não Eurídice, é deixado para trás, entregue a um inabitável mundo dos vivos.
Médico e soldado, Benn sempre escreveu na vizinhança da vida que expira, mas, justamente numa fase em que sua escrita sofria uma inflexão classicizante e a forma era o centro de suas preocupações, viu-se obrigado a ceder voz direta à experiência, traumática e decisiva, do suicídio de sua jovem mulher, Hertha Benn, após a capitulação alemã.
Diferenças de circunstância aparte, a mesma equação entre vida, morte, forma e linguagem está lá, provando que a disposição lírica não pode prescindir da comoção individual. Nem deve.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Algo: Preto
    
Autor: Jacques Roubaud Tradução: Inês Oseki-Dépré Editora: Perspectiva Quanto: R$ 25 (152 págs.)


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Poema
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.