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RODAPÉ
Roubaud e o silêncio de Orfeu
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
"Algo : Preto" apresenta aos
brasileiros a obra de Jacques Roubaud, antes confinada a
exemplos esparsos em antologias
e revistas. Se não se trata de um livro típico do poeta, é dessa estranheza em meio ao percurso que
brota sua maior força lírica.
Nascido em 1932, Roubaud fincou as estacas de sua obra na pesquisa de estruturas que aliam um
profundo conhecimento da história das formas poéticas (dos trovadores, passando pela poesia
tradicional japonesa, até a persistência inconsciente do alexandrino em meio ao verso livre) à exploração da uma modalidade
própria de liberdade que a arquitetura dos números, transposta à
esfera verbal, propicia.
Poeta, matemático e ensaísta,
compondo ao lado de Michel Déguy e Yves Bonnefoy, a trinca
mais respeitada de poetas hoje
atuantes na França, Roubaud faz
parte do OuLiPo, a "Oficina de Literatura Potencial", que, na esteira de nomes como Raymond
Queneau e Georges Perec, multiplica por -1 a arbitrariedade das
convenções formais que sustentam toda literatura.
Voluntariamente abraçados e
trabalhados, esses artifícios fundadores passariam de limites do
acaso a balizas auto-impostas na
livre invenção de novos mundos.
Assim, "Trinta e Um ao Cubo"
(1973), por exemplo, reúne 31
poemas de 31 versos e 31 sílabas,
casando o admirador do haicai ao
mestre da lógica, fantasia lúdica a
rigor.
Nesse mundo de pureza formal
e jogo inventivo, aparentemente
refratário à história, "Algo: Preto"
destoa. É um poema "sujo" de vida, motivado por uma experiência biográfica decisiva: a morte de
sua mulher, a fotógrafa Alix Cleo
Roubaud, em 1985.
Longo poema, ou reunião de
poemas, seccionado em nove partes, cada uma composta de nove
poemas, "Algo: Preto" é uma tentativa de lidar com os limites do
tempo, da palavra e do amor,
num registro que, sem incorrer
no sentimentalismo e no patético,
não deixa de afirmar as raízes da
lírica moderna numa subjetividade fraturada.
Persistência
A palavra cassada pela dor e pelo nada, as imagens subitamente
estáticas, contrastadas ao tempo
que escoa, fazem parte de uma
equação que não deixa de ser a de
Orfeu: como seguir habitando um
mundo (inclusive o da linguagem) em que de dois resta apenas
um? O choque e o estranhamento
que a visão da morte -coisa em
si, irreversível, encapsulada no
corpo morto- e a persistência do
cotidiano, transcorrendo, indiferente, suspendem a eficácia da
própria poesia: imagem (Alix era
fotógrafa), nome, tudo é provisoriamente máquina emperrada,
cadáver ou coisa inerte, observada de fora.
O trabalho de luto consiste,
aqui, em fortalecer-se para não
mais desviar o olhar ("eu queria
ser o único no mundo a não ter
visto"), encarar a morte, imiscuída na materialidade do dia-a-dia,
e dela participar: "Quando tua
morte se acabar, eu estarei morto". O curto-circuito da experiência insufla no jogo das formas de
Roubaud paralisia provisória,
afasia que, ao quebrar provisoriamente a segurança das regras, pede para ser vencida, conferindo-lhe um novo grau de verdade humana.
Por caprichos da memória, lembrei-me de alguns poemas de
Gottfried Benn (1886-1956), também escritos sob o impacto de um
casal dividido pela morte e incluídos nos seus "Poemas Estáticos",
coletânea de 1948. Neles, também
Orfeu, e não Eurídice, é deixado
para trás, entregue a um inabitável mundo dos vivos.
Médico e soldado, Benn sempre
escreveu na vizinhança da vida
que expira, mas, justamente numa fase em que sua escrita sofria
uma inflexão classicizante e a forma era o centro de suas preocupações, viu-se obrigado a ceder voz
direta à experiência, traumática e
decisiva, do suicídio de sua jovem
mulher, Hertha Benn, após a capitulação alemã.
Diferenças de circunstância
aparte, a mesma equação entre vida, morte, forma e linguagem está
lá, provando que a disposição lírica não pode prescindir da comoção individual. Nem deve.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Algo: Preto
Autor: Jacques Roubaud
Tradução: Inês Oseki-Dépré
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 25 (152 págs.)
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