São Paulo, sexta-feira, 20 de agosto de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Grandezas e misérias das eleições


A democracia é assim, há que passar pelas ruas, sarjetas e pelos golpes sujos do vale-tudo eleitoral


ADMITO: É DOSE. Pelo que ocorre no Rio, é fácil avaliar o que está acontecendo nos outros Estados em matéria eleitoral. Todo mundo reclama da propaganda dos candidatos na TV, do que é permitido e vetado na campanha que limita o discurso dos candidatos às ideias básicas (se as há), resumidas afinal a um sumário brevíssimo e fortemente demagógico.
Cada pílula do tempo oferecida ao eleitor tem de conter os ingredientes que marcaram ou marcarão uma proposta política ou administrativa, e o resultado é quase sempre um programa pastoso, visionário e mais ou menos redundante em face das propostas gerais. Tudo fica igual, até mesmo demagógico.
Reconheço ainda que, num primeiro exame, a vontade do eleitor é tirar seu time de campo e achar os candidatos, com algumas exceções, o rebotalho de uma sociedade em crise. Pensa-se -com critérios elitistas- que a oferta é a pior possível, que de nada adiantou tanta gente brigar e morrer para a restauração das eleições livres e diretas. Grosso modo, tudo isso é verdade, e não apenas no Brasil, mas em todos os países que adotam a democracia representativa.
Já acompanhei, por cavaco do ofício, eleições em sociedades ditas civilizadas e o sistema é mais ou menos o mesmo, embora a legislação eleitoral varie em gênero e modo em cada país.
O que importa é a constatação: a democracia é assim mesmo, há que passar pelas ruas, pelas sarjetas, pelo rebotalho, pelos golpes sujos do vale-tudo eleitoral. Bem verdade que a sociedade, como um todo, também não chega a ser uma vestal, flor que se cheire. Em cada episódio eleitoral, ela se reflete em sua nudez.
Porque a melhor maneira de justificar o poder é fazê-lo passar pelas ruas e caminhos do mundo, com tudo o que de sórdido e sujo o próprio mundo produz. Preferível esse tipo de poder que sai muitas vezes das estrumeiras eleitorais do que o asséptico poder imposto pela força e baioneta, pelos Estados-maiores.
De certa forma, durante muitos anos estávamos desabituados a isso. É possível que muitos, sobretudo os jovens, sintam repugnância pelo que estão vendo e ouvindo na TV. Na melhor das hipóteses, julgarão tudo uma palhaçada. Pois essa palhaçada é a melhor forma de administrarmos uma sociedade que, ela própria, incluindo seus jovens mais puros e altaneiros, não deixa de ser também uma grande palhaçada.
É preciso coragem para reconhecermos em cada candidato, no mais despreparado, no mais agressivo, no mais demagógico, a nossa própria história individual, o nosso componente existencial mais fundo e inarredável.
Repito: é desse lixão orgânico que nasce o que temos de melhor como sociedade e governo. No subconsciente do homem ocidental ficou o estigma, lançado genericamente por Platão, de uma república governada por sábios e santos -ideal que as ditaduras de todos os hemisférios e latitudes costumam propor periodicamente à consciência dos povos. Evidente: dando-se a si mesmas as qualidades previstas por Platão.
Lembro um marechal que, no ano de 1964, declarou solenemente: "Eleição tumultua a vida do país!". Além do tumulto, há sempre a inevitabilidade de escolhas que o ex-presidente Janio Quadros chamaria de "malsãs".
Pois até mesmo as escolhas malsãs, feitas por todo o povo, são infinitamente melhores do que a seleção elitista das ditaduras. Dito isso, diremos mais: bendito o tumulto eleitoral que nos mostra, coletivamente, a miséria e a grandeza de cada um de nós.
O desfile de caras e bocas na TV e nos cartazes de rua traz geralmente um slogan genérico e positivo: mais escolas, mais segurança, saúde para todos, menos impostos, contra o crime e a violência, salvemos nossas florestas -por aí vai.
Tudo bem. Mas quem promete, quais as condições concretas e conhecimento de causa dos camelôs que anunciam tantas maravilhas? Mais lógico seria se cada um deles tentasse provar do que são capazes, do que já fizeram e como fizeram. Conhecer as ideias de um candidato não significa conhecer o candidato em si -e o resultado são as constantes e lamentáveis decepções que já tivemos em nossa vida republicana.


AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Antonio Cicero




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