São Paulo, segunda-feira, 20 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Na caverna de Nick

Divulgação
Nick Cave (esq.) e integrantes dos Bad Seeds, que lançam o disco duplo "Abbatoir Blues/The Lyre of Orpheus"; álbum chega às lojas brasileiras em outubro



O cantor Nick Cave fala de seu primeiro disco duplo e faz um balanço de sua carreira desde o Birthday Party, nos anos 80

FIONA STURGES
DO "INDEPENDENT"

Ser entrevistado não está entre as ocupações favoritas do cantor Nick Cave. Fumando furiosamente, ele parece especialmente incomodado quando a conversa chega à sua vida pessoal.
É fácil notar que a reticência não envolve apenas a proteção de sua privacidade. Retrospectivas não são parte da natureza dele. "O que aconteceu em minha vida, aconteceu. Não importa quanto você remexa no passado, continuará sendo a mesma pessoa", diz.
Meu encontro com Cave aconteceu em seu escritório, perto de sua casa, em Hove, East Sussex (Inglaterra), onde ele trabalha em horário comercial. É uma sala espaçosa, contendo um computador, dois pianos e uma pequena cozinha. As paredes estão cobertas de estantes contendo biografias de Auden, Blake e Beckett, escritores cuja influência é reconhecível em seu trabalho, e vejo pelo menos duas cópias da Bíblia.
"Escrevo aqui porque não quero fazê-lo em casa", diz. "Minha família não deve ficar sujeita ao processo criativo, que é coisa indigna e não deve ser vista por ninguém. É mais ou menos como fechar a porta ao usar o banheiro."
Cave, 47, ainda é uma força vital na música. Além de compor para outros cantores, mais recentemente para Marianne Faithfull, ele e os Bad Seeds acabam de lançar o álbum duplo "Abbatoir Blues/ The Lyre of Orpheus". Trata-se, insiste Cave, de "uma obra-prima". "E não digo isso de todos os discos que gravei."
Até agora, Cave criava isoladamente. Dessa vez, porém, os Bad Seeds estiveram envolvidos desde o começo do processo. "Já tive experiências em que levava alguma coisa para o estúdio e, ao tocar, percebia que era mesmo ruim", explica Cave. "Fica aquele silêncio mortal quando você termina. Dessa vez, fomos a um estúdio em Paris para ver se podíamos compor algumas canções como grupo. Isso queria dizer tocar juntos, sem saber com antecedência que canção sairia disso."
Desde o começo de sua carreira, como cantor do Birthday Party, até sua presente encarnação como um dos principais compositores de sua geração, Cave inspira devoção fervorosa nos fãs.
Chegando ao Reino Unido de sua Melbourne (Austrália) natal no começo dos anos 80, a banda ganhou notoriedade por seus shows caóticos e violentos, e Cave se tornou um símbolo dos jovens insatisfeitos. No palco, aquele jovem reticente se transformava em um pregador demoníaco, pronunciando letras sombrias e teatrais com um uivo feroz.
Suas atividades fora do palco não eram menos dramáticas. Ele empreendeu uma campanha incansável de autodestruição. Reza a lenda que Cave, macérrimo, foi visto no metrô de Londres escrevendo uma carta com uma seringa repleta de sangue. Na metade dos anos 80, ele se mudou para Berlim por um curto período, onde subsistiu com uma dieta de heroína e anfetaminas, reforçada por leituras pesadas da Bíblia.
Musicalmente, Cave não realizou plenamente o seu potencial até se unir aos Bad Seeds. De sua primeira formação, com Mick Harvey, Blixa Bargeld, Hugo Race e Barry Adamson, ao septeto dos últimos anos, o grupo criou climas densos para os versos de Cave, sob a inspiração do blues profano de Charlie Patton e Robert Johnson, do country sombrio de Johnny Cash e das lúgubres canções de Leonard Cohen.
Os anos 90 enterneceram o espírito de Cave, situação estimulada por ele ter largado a heroína. Cave talvez continue a ser mais conhecido por "Where the Wild Roses Grow", seu dueto de 1996 com Kylie Minogue. Mas a inclusão de "People Ain't No Good" na trilha sonora de "Shrek 2" levou sua música a uma audiência nova.
A atual musa de Cave é a modelo inglesa Susie Bick, com quem se casou no dia do eclipse de 1999 e com quem tem dois filhos, Earl e Arthur. (Cave tem mais dois filhos, Luke e Jethro, de casamentos anteriores.) Embora se admita satisfeito com a vida de agora, se esforça por explicar que isso não acontece à custa de seu passado. "Conheço por muita gente que passou por coisa semelhante e negou o que veio antes", diz. "Não é como essas pessoas que encontram uma religião, lavam seus pecados e tudo o que aconteceu antes de repente não vale mais nada. Não vejo minha vida assim."
"Tenho um relacionamento ótimo com minha mulher. Ela me apóia imensamente, e existe entre nós a sensação de que estamos do mesmo lado. Não ter de entrar em disputas com a pessoa com que amo é novidade para mim."
Depois de ser expulso de um colégio de arte no final da adolescência, em Melbourne, Cave formou sua primeira banda de rock. Em retrospecto, ele agora entende que seus pais o apoiaram muito.
Seu pai, que morreu quando Cave tinha 19 anos, era professor de literatura e ajudou a fomentar o amor do filho pelos livros.
Será que começar uma banda foi um ato de rebelião? "Pode ter sido, mas não acho que ele o tenha encarado dessa forma", responde Cave. "Ele acreditava que a literatura ocupasse o topo da pirâmide do saber. Talvez tenha pensado que os seus esforços para me transmitir o que sabia tivessem sido desperdiçados. E então ele morreu e não pôde ver as coisas em que usei o que me ensinou."
Cave precisou de 25 anos para se acomodar à sua posição de cantor e compositor renomado. "Passei a entender mais a música, nos últimos dez anos, e o meu lugar nela. Agora sou um pianista melhor, um cantor melhor, e isso me dá uma certa confiança. Quando eu tinha 20, 30 anos, me sentia um impostor."
Isso talvez explique por que Cave sempre procurou ampliar seus horizontes. Em 1989 publicou seu único romance, o elogiado "And the Ass Saw the Angel". Nos últimos anos, ele escreveu um prefácio para o Evangelho Segundo Marcos (ed. Canongate) e fez palestras sobre a canção de amor. Neste ano, escreveu o roteiro de "The Proposition", um filme sobre caubóis australianos que será dirigido por John Hillcoat.
Mas ele sempre volta para a música. "Houve época em que eu achava que a palavra escrita era mais importante do que o rock", reflete. "Mas a maneira pela qual encaro a música mudou, e poder continuar com minha fantasia adolescente de subir ao palco, mesmo que esteja bem adiantado na meia-idade, é algo de notável."

Tradução Paulo Migliacci


Texto Anterior: Programação
Próximo Texto: Crítica: Mais maduro, cantor encarna o médico e o monstro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.