São Paulo, segunda-feira, 20 de setembro de 2004

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NELSON ASCHER

Línguas e línguas

Qual a melhor língua para a poesia em particular ou para a literatura em geral? A maioria dos falantes nativos de cada uma delas provavelmente diria que é a sua, os italianos colocando na mesa as obras completas de Dante, os ingleses ostentando as peças de Shakespeare, os alemães lhes contrapondo os tomos de Goethe.
Há dezenas de idiomas que dispõem de pelos menos um autor ou obra que mereceria inclusão no que o crítico americano Harold Bloom chamou de "o cânone ocidental". Os noruegueses têm Ibsen, os suecos Strindberg, os dinamarqueses Andersen, os fin- landeses sua epopéia nacional, o "Kalevala". Entre os menos conhecidos vale lembrar: "Pan Tadeusz", do polonês Adam Mickiewicz, "A Grinalda da Montanha", do montenegrino Petar Petrovic Njegos, "A Tragédia do Homem", do Húngaro Imre Madách, "A Atlântida", do catalão Jacint Verdaguer, "Maio", do tcheco Karel Hynek Macha, a lírica do ucraniano Tarás Shevtchenko, as baladas populares sérvias sobre a batalha de Kossovo em 1389. Não obstante mal terem cruzado as fronteiras dos países de origem, esses autores e/ou textos se acham no âmago de suas respectivas consciências nacionais.
Desde o final do século 18, o Ocidente vem também aprendendo a apreciar a literatura oriental: as imensas epopéias da Índia clássica, "O Dito de Genji" que, escrito há um milênio no Japão, por Murasaki Shikibu, muitos consideram o primeiro romance de verdade, os poetas das dinastias chinesas Tang e Sung. Bem ou mal traduzidos, todos já chegaram às principais línguas européias.
Alguns povos argumentarão que, mais do que uma obra-prima aqui e ali, o que conta é uma longa tradição literária. Se for este o caso, o inglês, no qual não há, desde os primórdios da Idade Média, praticamente um período que tenha deixado de oferecer algo valioso, bateria seus rivais. O segundo lugar caberia ao espanhol. Isso, bem entendido, na extremidade ocidental da Eurásia, uma vez que, no seu extremo oposto, chineses e japoneses reivindicariam méritos similares.
No entanto, talvez não haja uma conexão imediata entre a qualidade de um idioma e o de sua literatura. Afinal, não pouco da reputação de Dante, Camões, Shakespeare, Goethe e Púchkin advém de terem transformado, graças a sua genialidade, línguas "subdesenvolvidas" em instrumentos eficazes para a criação de alta cultura. Talvez sejam o italiano, português, inglês, alemão e russo que estão em dívida com seus monstros sagrados, não o contrário. Então a grandeza literária de tal ou qual povo resultaria menos das qualidades intrínsecas de sua língua do que da história e do acaso. Como explicar de maneira diferente que, enquanto a opulenta Holanda, tão talentosa nas artes plásticas, não nos legou, em séculos, um poeta de primeira, a Grécia moderna, um país pobre e atrasado, produziu Kaváfis, Séferis, Ritsos e Elytis?
É, sem dúvida, proveitoso trabalhar no âmbito de uma tradição menos cultivada: quem o faça não precisa se preocupar com mil anos acumulados de concorrência pesando-lhe nas costas, sua margem de liberdade é mais ampla e nada o impede de pilhar à vontade tradições diversas, porque, com sorte, será considerado o introdutor desse ou daquele recurso (digamos, o soneto ou o romance moderno) em seu país. Ismail Kadaré, mesmo se deixarmos de lado suas virtudes, beneficia-se de ter se tornado o primeiro albanês internacionalmente conhecido.
Os lingüistas profissionais decerto sorrirão desdenhosos diante da ingenuidade das indagações acima. Qualquer língua, segundo eles, é tão complexa, a seu modo, quanto a seguinte e, se não idênticas em seus infinitos detalhes, todas, em última instância, se equivalem. A longo prazo, não há o que discutir com eles. Publicam-se hoje, em idiomas cujos falantes viviam duas ou três gerações atrás em sociedades paleolíticas, manuais de computação. Tradutores empenhados transpuseram com sucesso "As Flores do Mal" de Baudelaire para línguas que, no século 19, eram apenas "dialetos camponeses" ou que só principiaram a ser escritas no século 20. Sua maleabilidade não tem limites e todas conseguem, quando necessário, passar, sem escalas, da Idade da Pedra à Era da Informática.
Numa perspectiva temporal limitada, porém, os diversos idiomas possuem, cada qual, suas vantagens e desvantagens. Dependendo do tipo de poesia que se queira escrever, da escola ou do estilo vigente, algumas podem ser mais adequadas ou estar mais preparadas que suas competidoras.
Um poeta como e. e. cummings lançou mão da estrutura do inglês para elaborar textos cujo fundamento reside na ambigüidade gramatical. Gerard Manley Hopkins aplicou suas peculiaridades fonéticas numa versificação decisivamente marcada pelo contraste entre tônicas e átonas e pelas aliterações. Seria difícil emulá-los em francês e, assim, Mallarmé recorreu a sua sintaxe para imprimir dois ou mais sentidos concomitantes a seu poemas, enriquecendo-os com a orquestração sutil de nuanças vocais inaudíveis pelos estrangeiros. Fernando Pessoa, por seu turno, edificou uma poética sobre nossa fartura de conjugações verbais, e Drummond valeu-se da janela histórica aberta pela oscilação entre norma culta e coloquialidade no português do Brasil.
Não existe, ao fim e ao cabo, uma única língua incapaz de gerar ou acolher grande poesia, embora seja à intervenção do indivíduo certo na hora certa que se deve a diferença entre glória e irrelevância, pois se às vezes os melhores poetas obtém bons resultados mergulhando nas particularidades de seus idiomas, outras vezes eles o fazem revoltando-se contra suas limitações.


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