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NELSON ASCHER
Línguas e línguas
Qual a melhor língua para a
poesia em particular ou para a literatura em geral? A maioria dos falantes nativos de cada
uma delas provavelmente diria
que é a sua, os italianos colocando na mesa as obras completas de
Dante, os ingleses ostentando as
peças de Shakespeare, os alemães
lhes contrapondo os tomos de
Goethe.
Há dezenas de idiomas que dispõem de pelos menos um autor
ou obra que mereceria inclusão
no que o crítico americano Harold Bloom chamou de "o cânone
ocidental". Os noruegueses têm
Ibsen, os suecos Strindberg, os dinamarqueses Andersen, os fin-
landeses sua epopéia nacional, o
"Kalevala". Entre os menos conhecidos vale lembrar: "Pan Tadeusz", do polonês Adam Mickiewicz, "A Grinalda da Montanha", do montenegrino Petar Petrovic Njegos, "A Tragédia do Homem", do Húngaro Imre Madách, "A Atlântida", do catalão
Jacint Verdaguer, "Maio", do
tcheco Karel Hynek Macha, a lírica do ucraniano Tarás Shevtchenko, as baladas populares sérvias sobre a batalha de Kossovo
em 1389. Não obstante mal terem
cruzado as fronteiras dos países
de origem, esses autores e/ou textos se acham no âmago de suas
respectivas consciências nacionais.
Desde o final do século 18, o Ocidente vem também aprendendo a
apreciar a literatura oriental: as
imensas epopéias da Índia clássica, "O Dito de Genji" que, escrito
há um milênio no Japão, por Murasaki Shikibu, muitos consideram o primeiro romance de verdade, os poetas das dinastias chinesas Tang e Sung. Bem ou mal
traduzidos, todos já chegaram às
principais línguas européias.
Alguns povos argumentarão
que, mais do que uma obra-prima aqui e ali, o que conta é uma
longa tradição literária. Se for este o caso, o inglês, no qual não há,
desde os primórdios da Idade Média, praticamente um período
que tenha deixado de oferecer algo valioso, bateria seus rivais. O
segundo lugar caberia ao espanhol. Isso, bem entendido, na extremidade ocidental da Eurásia,
uma vez que, no seu extremo
oposto, chineses e japoneses reivindicariam méritos similares.
No entanto, talvez não haja
uma conexão imediata entre a
qualidade de um idioma e o de
sua literatura. Afinal, não pouco
da reputação de Dante, Camões,
Shakespeare, Goethe e Púchkin
advém de terem transformado,
graças a sua genialidade, línguas
"subdesenvolvidas" em instrumentos eficazes para a criação de
alta cultura. Talvez sejam o italiano, português, inglês, alemão e
russo que estão em dívida com
seus monstros sagrados, não o
contrário. Então a grandeza literária de tal ou qual povo resultaria menos das qualidades intrínsecas de sua língua do que da história e do acaso. Como explicar
de maneira diferente que, enquanto a opulenta Holanda, tão
talentosa nas artes plásticas, não
nos legou, em séculos, um poeta
de primeira, a Grécia moderna,
um país pobre e atrasado, produziu Kaváfis, Séferis, Ritsos e Elytis?
É, sem dúvida, proveitoso trabalhar no âmbito de uma tradição menos cultivada: quem o faça
não precisa se preocupar com mil
anos acumulados de concorrência pesando-lhe nas costas, sua
margem de liberdade é mais ampla e nada o impede de pilhar à
vontade tradições diversas, porque, com sorte, será considerado o
introdutor desse ou daquele recurso (digamos, o soneto ou o romance moderno) em seu país. Ismail Kadaré, mesmo se deixarmos de lado suas virtudes, beneficia-se de ter se tornado o primeiro
albanês internacionalmente conhecido.
Os lingüistas profissionais decerto sorrirão desdenhosos diante
da ingenuidade das indagações
acima. Qualquer língua, segundo
eles, é tão complexa, a seu modo,
quanto a seguinte e, se não idênticas em seus infinitos detalhes, todas, em última instância, se equivalem. A longo prazo, não há o
que discutir com eles. Publicam-se hoje, em idiomas cujos falantes
viviam duas ou três gerações
atrás em sociedades paleolíticas,
manuais de computação. Tradutores empenhados transpuseram
com sucesso "As Flores do Mal"
de Baudelaire para línguas que,
no século 19, eram apenas "dialetos camponeses" ou que só principiaram a ser escritas no século 20.
Sua maleabilidade não tem limites e todas conseguem, quando
necessário, passar, sem escalas, da
Idade da Pedra à Era da Informática.
Numa perspectiva temporal limitada, porém, os diversos idiomas possuem, cada qual, suas
vantagens e desvantagens. Dependendo do tipo de poesia que se
queira escrever, da escola ou do
estilo vigente, algumas podem ser
mais adequadas ou estar mais
preparadas que suas competidoras.
Um poeta como e. e. cummings
lançou mão da estrutura do inglês para elaborar textos cujo fundamento reside na ambigüidade
gramatical. Gerard Manley Hopkins aplicou suas peculiaridades
fonéticas numa versificação decisivamente marcada pelo contraste entre tônicas e átonas e pelas
aliterações. Seria difícil emulá-los
em francês e, assim, Mallarmé recorreu a sua sintaxe para imprimir dois ou mais sentidos concomitantes a seu poemas, enriquecendo-os com a orquestração sutil
de nuanças vocais inaudíveis pelos estrangeiros. Fernando Pessoa, por seu turno, edificou uma
poética sobre nossa fartura de
conjugações verbais, e Drummond valeu-se da janela histórica
aberta pela oscilação entre norma culta e coloquialidade no português do Brasil.
Não existe, ao fim e ao cabo,
uma única língua incapaz de gerar ou acolher grande poesia, embora seja à intervenção do indivíduo certo na hora certa que se deve a diferença entre glória e irrelevância, pois se às vezes os melhores poetas obtém bons resultados
mergulhando nas particularidades de seus idiomas, outras vezes
eles o fazem revoltando-se contra
suas limitações.
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