São Paulo, quarta-feira, 20 de setembro de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Memórias de um antiburguês

Nunca entendi pessoas que olham para um "intelectual" como "consciência moral" do que quer que seja

QUE DIZER do "affair" Grass?
Vocês conhecem a história: Günter Grass, Nobel da Literatura e, opinião pessoal, um escritor francamente mediano, foi durante 50 anos a "consciência moral" da Alemanha.
Ponto prévio: nunca entendi pessoas aparentemente civilizadas que olham para um "intelectual", qualquer que ele seja, como "consciência moral" do que quer que seja. Basta que se leia a história de grande parte da seita desde, pelo menos, o Iluminismo continental.
Mas adiante. Grass, a "consciência moral", marchou aos 17 anos com as Waffen-SS, a tropa de elite do Terceiro Reich. Pior: escondeu o fato durante a vida inteira e resolveu, em ato de expiação tardia, contar tudo em livro de memórias, "Descascando a Cebola", inédito no Brasil.
O livro, apesar do título, vendeu brutalmente (por que será?), mas a Alemanha, a Europa e o mundo letrado ficaram em choque com a revelação. Sobretudo porque Grass, em seu papel de "consciência moral", fez carreira pública com exigências histéricas, e obviamente suspeitas, para que os seus compatriotas assumissem as culpas do passado.
Ficou célebre, aliás, a polêmica promovida por Grass em 1985, quando Ronald Reagan e o então chanceler alemão Willy Brandt visitaram o cemitério militar de Bitburg, local onde soldados nazistas estavam enterrados. "O horror! O horror!", gritou Grass com a imoralidade da visita.
Tirando a evidente hipocrisia da personagem, que dispensa qualquer comentário adicional, existe porém um aspecto da história que ainda ninguém tentara apurar: mas por que motivo a "consciência moral" da Alemanha desejara marchar com as tropas nazistas?
Admiração bélica? Estupidez ideológica? Atração homoerótica por botas e fardas?
Nada disso.
Nas páginas da revista "The New Yorker", um excerto das memórias revela o enigma: Grass desejava apenas libertar-se do nauseabundo ambiente burguês que contaminava a família inteira.
Dito assim, a coisa faz sentido: o Terceiro Reich podia ser tudo. Não era, seguramente, um antro burguês com seu gosto pelo capitalismo, pela democracia liberal, pela tolerância pluralista e por mais dois ou três vícios filistinos que normalmente definem uma sociedade burguesa. Grass desejava adrenalina, ou seja, violência, ou seja, revolução.
Como, de certa forma, ainda hoje deseja. Quando lemos Grass a dissertar e a defender publicamente ditaduras paranóicas, como Cuba ou a China, não encontramos apenas o conhecido antiamericanismo primitivo que define grande parte da "intelligentsia" ocidental.
Encontramos também uma defesa de regimes totalitários em que existe essa mesma pulsão antiliberal, antidemocrática, antiindividualista e, claro, antiburguesa que um jovem de 17 anos esperava encontrar nas tropas do Führer.
De um extremo ao outro, a viagem foi curta.
E, como na restauração dos Bourbon, eu desconfio que Grass não aprendeu nem esqueceu rigorosamente nada.


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