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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Memórias de um antiburguês
Nunca entendi pessoas que olham para um "intelectual" como "consciência moral" do que quer que seja
QUE DIZER do "affair" Grass?
Vocês conhecem a história:
Günter Grass, Nobel da Literatura e, opinião pessoal, um escritor francamente mediano, foi durante 50 anos a "consciência moral"
da Alemanha.
Ponto prévio: nunca entendi pessoas aparentemente civilizadas que
olham para um "intelectual", qualquer que ele seja, como "consciência
moral" do que quer que seja. Basta
que se leia a história de grande parte
da seita desde, pelo menos, o Iluminismo continental.
Mas adiante. Grass, a "consciência
moral", marchou aos 17 anos com as
Waffen-SS, a tropa de elite do Terceiro Reich. Pior: escondeu o fato
durante a vida inteira e resolveu, em
ato de expiação tardia, contar tudo
em livro de memórias, "Descascando a Cebola", inédito no Brasil.
O livro, apesar do título, vendeu
brutalmente (por que será?), mas a
Alemanha, a Europa e o mundo letrado ficaram em choque com a revelação. Sobretudo porque Grass,
em seu papel de "consciência moral", fez carreira pública com exigências histéricas, e obviamente suspeitas, para que os seus compatriotas
assumissem as culpas do passado.
Ficou célebre, aliás, a polêmica
promovida por Grass em 1985,
quando Ronald Reagan e o então
chanceler alemão Willy Brandt visitaram o cemitério militar de Bitburg, local onde soldados nazistas
estavam enterrados. "O horror! O
horror!", gritou Grass com a imoralidade da visita.
Tirando a evidente hipocrisia da
personagem, que dispensa qualquer
comentário adicional, existe porém
um aspecto da história que ainda
ninguém tentara apurar: mas por
que motivo a "consciência moral" da
Alemanha desejara marchar com as
tropas nazistas?
Admiração bélica? Estupidez
ideológica? Atração homoerótica
por botas e fardas?
Nada disso.
Nas páginas da revista "The New
Yorker", um excerto das memórias
revela o enigma: Grass desejava apenas libertar-se do nauseabundo ambiente burguês que contaminava a
família inteira.
Dito assim, a coisa faz sentido: o
Terceiro Reich podia ser tudo. Não
era, seguramente, um antro burguês
com seu gosto pelo capitalismo, pela
democracia liberal, pela tolerância
pluralista e por mais dois ou três vícios filistinos que normalmente definem uma sociedade burguesa.
Grass desejava adrenalina, ou seja,
violência, ou seja, revolução.
Como, de certa forma, ainda hoje
deseja. Quando lemos Grass a dissertar e a defender publicamente ditaduras paranóicas, como Cuba ou a
China, não encontramos apenas o
conhecido antiamericanismo primitivo que define grande parte da
"intelligentsia" ocidental.
Encontramos também uma defesa de regimes totalitários em que
existe essa mesma pulsão antiliberal, antidemocrática, antiindividualista e, claro, antiburguesa que um
jovem de 17 anos esperava encontrar nas tropas do Führer.
De um extremo ao outro, a viagem
foi curta.
E, como na restauração dos Bourbon, eu desconfio que Grass não
aprendeu nem esqueceu rigorosamente nada.
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