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MARCELO COELHO
O momento literário
Desse granizo miúdo de personalidades literárias, o que fica é uma impressão de vida
A CRÍTICA está morrendo. No
máximo, temos reportagens
sobre autores. Não se quer conhecer nenhuma obra; o que interessa são os detalhes biográficos de
quem a escreveu. O jornalismo é hoje uma instituição coletiva, anônima
e quase irresponsável. A literatura
brasileira passa por um período de
estagnação.
Na política, as casas legislativas se
transformam, como nunca, em tipos
coletivos de ajuntamento ilícito,
sem nenhuma preocupação hipócrita de salvar aparências. Literatura e
democracia sofrem do mesmo mal:
a ignorância popular, fomentada e
cultivada pelos poderes públicos.
Tudo isso se dizia em 1904. É o
ano em que o escritor e jornalista
João do Rio (1881-1921) fez uma série de entrevistas com muitos dos
principais homens de letras brasileiros. Reuniu-as em "O Momento Literário", livro que agora é reeditado
pelas Edições Criar, de Curitiba.
As frases que pus no começo do
artigo resumem considerações do
próprio João do Rio e de alguns de
seus entrevistados. Foram quase 40:
de Olavo Bilac, Coelho Neto e Silvio
Romero a Pedro do Couto, Magnus
Söndhal e Félix Pacheco.
As reclamações dos literatos não
se alteram com os anos e, sem dúvida, têm boas razões para continuar
em voga. Mas, quando dizemos que
nada mudou, há muitas ilusões de
ótica distorcendo nosso julgamento.
Uma vez, estive em Ouro Preto, e,
numa daquelas visitas às igrejas, o
guia estava explicando os diversos
procedimentos pelos quais se tentava enganar o fisco -desde o célebre
"santinho do pau oco" ao recurso de
esconder ouro em pó no meio do cabelo crespo dos escravos. Ao meu lado, um turista não se continha de
admiração diante da inventividade
humana quando se trata de escapar
aos rigores da tributação. "Sonegando, hein... Já naquela época!" E seu
risinho surpreendido comemorava,
sobre um abismo de dois séculos, a
imutável esperteza humana.
Claro que, em muitos aspectos, o
Brasil literário de 1904 padecia das
mesmas insuficiências que conhecemos hoje; mas algumas semelhanças podem ser enganadoras, e outras
podem não passar de simples coincidência. Toda época, ou quase toda,
está sujeita ao mesmo tipo de crítica
por parte de quem vive nela: o panorama é confuso, os novos talentos
não se firmaram, os escritores atuais
não têm a mesma estatura daqueles
do passado...
Por outro lado, a belle époque brasileira foi mesmo um período fraco
para a literatura. Pululam figuras
menores como Luís Delfino, Guimarães Passos, Luís Edmundo, Artur Orlando, Medeiros e Albuquerque... Que se dizem influenciados
por gente ainda mais desconhecida,
do quarto time da literatura e do
pensamento europeu: Maiseroy,
Poitou, Wyrouboff, Roberty...
Quanta poeira! Quantos fantasmas! Quantas convicções! Que múmias! Mas não tiro do livro nenhum
motivo de superioridade ou depressão. Desse granizo miúdo de personalidades literárias -Sousa Bandeira, Gustavo Santiago, Curvelo Mendonça- o que fica, na verdade, é
uma impressão de vida, de calor, de
inquietação.
Há alguns entrevistados bem patetas, é verdade. Mas não havia mais
patetas em 1904 do que em 2006,
apesar de nossa resistência em admitir o fato. Mesmo algumas figuras
totalmente presas às convenções de
sua época emergem das entrevistas
como indivíduos únicos, com seu
grau de loucura, de alegria, de furor
particular.
O padre Severiano de Resende,
"com voz passada em seda", odeia
Castro Alves, a quem chama de "insuportável metralhador de sílabas";
mas concede a Machado de Assis o
mérito de ser "o único prosador honesto que temos". Lima Campos improvisa em voz alta: "Ah! João! A crítica é sempre a água da análise pedantocrática vazada malevolamente
na açorda saborosa da produção".
Tudo tem vida nesse livro: as recordações de infância de Silvio Romero, o entusiasmo de Medeiros de
Albuquerque ao saber do assassinato de um ministro russo, o sarcasmo
de Frota Pessoa contra a ABL ("nunca, jamais, nenhum imortal, ali penetrando, fez, no seu caráter de
imortal, outra coisa que não partir
para a bem-aventurança").
"Isto é macabro", completa Frota
Pessoa. Sem dúvida. Estão todos
mortos. Mas as entrevistas de João
do Rio não são daqueles retratos antigos, de homens bigodudos, usando
pincenê, rígidos como cadáveres.
Mostram pessoas que estão vivendo
intensamente o seu tempo, pessoas
únicas, irrepetíveis. Podem não ter
sobrevivido literariamente, mas viveram. Já é alguma coisa.
coelhofsp@uol.com.br
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