São Paulo, quarta-feira, 20 de setembro de 2006

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MARCELO COELHO

O momento literário

Desse granizo miúdo de personalidades literárias, o que fica é uma impressão de vida

A CRÍTICA está morrendo. No máximo, temos reportagens sobre autores. Não se quer conhecer nenhuma obra; o que interessa são os detalhes biográficos de quem a escreveu. O jornalismo é hoje uma instituição coletiva, anônima e quase irresponsável. A literatura brasileira passa por um período de estagnação.
Na política, as casas legislativas se transformam, como nunca, em tipos coletivos de ajuntamento ilícito, sem nenhuma preocupação hipócrita de salvar aparências. Literatura e democracia sofrem do mesmo mal: a ignorância popular, fomentada e cultivada pelos poderes públicos.
Tudo isso se dizia em 1904. É o ano em que o escritor e jornalista João do Rio (1881-1921) fez uma série de entrevistas com muitos dos principais homens de letras brasileiros. Reuniu-as em "O Momento Literário", livro que agora é reeditado pelas Edições Criar, de Curitiba.
As frases que pus no começo do artigo resumem considerações do próprio João do Rio e de alguns de seus entrevistados. Foram quase 40: de Olavo Bilac, Coelho Neto e Silvio Romero a Pedro do Couto, Magnus Söndhal e Félix Pacheco.
As reclamações dos literatos não se alteram com os anos e, sem dúvida, têm boas razões para continuar em voga. Mas, quando dizemos que nada mudou, há muitas ilusões de ótica distorcendo nosso julgamento.
Uma vez, estive em Ouro Preto, e, numa daquelas visitas às igrejas, o guia estava explicando os diversos procedimentos pelos quais se tentava enganar o fisco -desde o célebre "santinho do pau oco" ao recurso de esconder ouro em pó no meio do cabelo crespo dos escravos. Ao meu lado, um turista não se continha de admiração diante da inventividade humana quando se trata de escapar aos rigores da tributação. "Sonegando, hein... Já naquela época!" E seu risinho surpreendido comemorava, sobre um abismo de dois séculos, a imutável esperteza humana.
Claro que, em muitos aspectos, o Brasil literário de 1904 padecia das mesmas insuficiências que conhecemos hoje; mas algumas semelhanças podem ser enganadoras, e outras podem não passar de simples coincidência. Toda época, ou quase toda, está sujeita ao mesmo tipo de crítica por parte de quem vive nela: o panorama é confuso, os novos talentos não se firmaram, os escritores atuais não têm a mesma estatura daqueles do passado...
Por outro lado, a belle époque brasileira foi mesmo um período fraco para a literatura. Pululam figuras menores como Luís Delfino, Guimarães Passos, Luís Edmundo, Artur Orlando, Medeiros e Albuquerque... Que se dizem influenciados por gente ainda mais desconhecida, do quarto time da literatura e do pensamento europeu: Maiseroy, Poitou, Wyrouboff, Roberty...
Quanta poeira! Quantos fantasmas! Quantas convicções! Que múmias! Mas não tiro do livro nenhum motivo de superioridade ou depressão. Desse granizo miúdo de personalidades literárias -Sousa Bandeira, Gustavo Santiago, Curvelo Mendonça- o que fica, na verdade, é uma impressão de vida, de calor, de inquietação.
Há alguns entrevistados bem patetas, é verdade. Mas não havia mais patetas em 1904 do que em 2006, apesar de nossa resistência em admitir o fato. Mesmo algumas figuras totalmente presas às convenções de sua época emergem das entrevistas como indivíduos únicos, com seu grau de loucura, de alegria, de furor particular.
O padre Severiano de Resende, "com voz passada em seda", odeia Castro Alves, a quem chama de "insuportável metralhador de sílabas"; mas concede a Machado de Assis o mérito de ser "o único prosador honesto que temos". Lima Campos improvisa em voz alta: "Ah! João! A crítica é sempre a água da análise pedantocrática vazada malevolamente na açorda saborosa da produção".
Tudo tem vida nesse livro: as recordações de infância de Silvio Romero, o entusiasmo de Medeiros de Albuquerque ao saber do assassinato de um ministro russo, o sarcasmo de Frota Pessoa contra a ABL ("nunca, jamais, nenhum imortal, ali penetrando, fez, no seu caráter de imortal, outra coisa que não partir para a bem-aventurança").
"Isto é macabro", completa Frota Pessoa. Sem dúvida. Estão todos mortos. Mas as entrevistas de João do Rio não são daqueles retratos antigos, de homens bigodudos, usando pincenê, rígidos como cadáveres. Mostram pessoas que estão vivendo intensamente o seu tempo, pessoas únicas, irrepetíveis. Podem não ter sobrevivido literariamente, mas viveram. Já é alguma coisa.


coelhofsp@uol.com.br

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