São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2008

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"Minha vida é só o ponto de partida"

Ato de registrar morte da mãe ou de organizar leitura de carta de rompimento amoroso é fazer "boa obra de arte", diz Calle

Instalação em que outras mulheres interpretam fim de romance chega ao Brasil em 2009; obra antiga estará na 28ª Bienal de São Paulo


Sophie Calle
Registro do projeto "Où et Quand' (2008), em que Calle viajou seguindo instruções de vidente; esta lhe pediu que comprasse flores para soldados mortos

GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA FOLHA, EM PARIS

Em 2005, Sophie Calle recebeu uma carta de rompimento amoroso. "Cuide-se bem", dizia o texto, ao fim. Sem saber o que fazer com o papel e com a dor que sentia, entregou a carta a 107 mulheres de variadas idades e profissões para que buscassem interpretações. Fotografou-as, filmou-as, e o resultado é "Prenez Soin de Vous" (cuide-se bem), enorme instalação em multimídia que a artista francesa concebeu para a Bienal de Veneza de 2007, exibiu em Paris no início deste ano e leva a três cidades brasileiras no ano que vem, em sua primeira visita ao país -Calle ainda estuda a possibilidade de participar da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Nome de peso da arte conceitual francesa, Calle especializou-se em investigar e expor traços da intimidade -sua ou alheia -numa combinação de biografia, ficção e voyeurismo. "La Filature" (perseguição), um de seus projetos mais antigos, de 1981, será exibido na 28ª Bienal de SP, em outubro. Poucos dias após apresentar novo trabalho na galeria Emmanuel Perrotin, a artista recebeu a reportagem da Folha em sua casa, em Malakoff, subúrbio ao sul de Paris. Entre beliscar um salame e acariciar o gato, falou sobre particularidades do seu trabalho e a decisão de filmar a morte de sua mãe.

 

FOLHA - Como será a sua primeira passagem pelo Brasil?
SOPHIE CALLE
- De repente, eu me vi envolvida em muitos projetos. "Prenez Soin de Vous" vai passar por três museus: em São Paulo, no Sesc Pompéia, do fim de julho ao fim de setembro de 2009; em Salvador, de outubro a novembro; e no Rio, de dezembro a janeiro de 2010. Irei para essa montagem. Além disso, há uma exposição coletiva no Oi Futuro, no Rio, e tenho convites para o Videobrasil e para um evento literário em... Pa-rat-y? Mas esse ainda não sei se poderei aceitar, vai depender das datas. Não posso passar quatro meses no Brasil...

FOLHA - Mas, antes de tudo isso, o seu nome é um dos principais da 28ª Bienal de São Paulo...
CALLE
- Quanto à Bienal, não houve muito o que decidir. Pegaram um projeto antigo ["La Filature", 1981], ligaram sabendo bem o que queriam. Como é um empréstimo de obra, os trâmites foram feitos pela galeria, não me ocupei disso.

FOLHA - Você tem uma metodologia recorrente: cria um jogo com regras definidas. Como isso começou?
CALLE
- Para dizer a verdade, estava perdida em Paris, no fim dos anos 70. Passei anos viajando e, ao voltar, não sabia o que fazer da vida, não tinha amigos nem emprego... Comecei a seguir pessoas na rua e a fazer fotos para me lembrar delas. Comecei a tomar notas para registrar aonde iam, criando uma ficha, como as de polícia. Foi um meio de reencontrar minha cidade. As regras do jogo estão na minha natureza. Quando era pequena, ia ao cemitério, fazia cerimônias de enterro para meus bichos de estimação. Sempre adorei rituais.

FOLHA - Seus projetos costumam juntar texto e imagem. A foto nasce baseada em texto ou é o contrário?
CALLE
- No caso de um trabalho como "Unfinished" [inacabado], vi as imagens antes e não soube o que fazer com elas. Procurei o texto por 15 anos. Mas nunca me senti 100% à vontade só com um ou outro. Quando seguia pessoas na rua, a necessidade de produzir imagens me obrigava a chegar mais perto e, com isso, ter mais material para texto. As coisas estão intrincadas. Mas, em geral, encontro a idéia primeiro -enviar algo a alguém, instalar-me em tal endereço, idéias simples-, o resto vem depois.

FOLHA - Seus trabalhos costumam ter boas doses autobiográficas. Como separa ficção e realidade?
CALLE
- Não quero só expor minhas dores e sofrimentos. Minha vida é o ponto de partida, mas o que me interessa é fazer uma boa obra de arte, um livro bem escrito, o que seja. Com "Prenez Soin de Vous", vi logo o que isso podia me trazer em termos terapêuticos, mas, após alguns dias, estava mais preocupada em saber se o resultado ficaria bem na parede. Se for pela terapia, outras coisas funcionam igual: viajar, comprar um vestido, ir ao cabeleireiro...

FOLHA - Você há pouco tempo registrou em vídeo a morte de sua mãe. Foi uma decisão artística?
CALLE
- Minha mãe era vaidosa e extravagante, adorava estar no centro. Os médicos lhe deram um mês de vida. Eu gostaria de estar lá quando ela morresse, escutar suas últimas palavras. E, embora tenha me mudado para a casa dela, não podia estar ali o tempo inteiro. Precisava dormir, fazer comida... Num dado momento, disse a ela que colocaria uma câmera. Em vez de contar os dias que faltavam para a morte dela, passei a contar de forma obsessiva os minutos que faltavam para trocar a fita, desloquei a angústia. Quando ela morreu, eu estava efetivamente presente, vi seu sorriso. Quanto ao material, até agora não tive coragem de me debruçar sobre a filmagem. Tenho 612 horas.

FOLHA - Mas como isso foi parar na Bienal de Veneza?
CALLE
- Publiquei um texto em todos os jornais para anunciar sua morte. Robert Storr [curador] me propôs expor esse texto e as imagens em vídeo na Bienal. Eu disse: "Sinto muito. Gostaria de fazer algo sobre a morte da minha mãe, mas não estou pronta". Ele insistiu. Justamente por não ser capaz de assistir aos filmes, só vi um, o último. O projeto saiu assim, com esse texto e com minha incapacidade de ver os outros filmes. Foi uma homenagem... Se ela tivesse morrido com convulsões, eu nunca mostraria, mas ela morreu magnífica. Levá-la a Veneza deixou muita gente horrorizada. Recebi cartas com insultos, mas a maior parte dessas pessoas nem sequer viu o trabalho.

FOLHA - Feitiços podem virar contra o feiticeiro. Você já foi seguida?
CALLE
- Uma estudante canadense recebeu uma bolsa para me seguir e depois publicou um livro. Mas ela se engana muito. Foi aos bairros de que gosto, fotografou a porta da minha casa, mas eu nunca estou nas fotos. Assim fica meio fácil.

FOLHA - Ouvi dizer que você prepara um projeto usando o que os jornalistas escrevem a seu respeito...
CALLE
- As entrevistas sempre dão margem a mal-entendidos. Volta e meia encontro erros ou frases fora de contexto. Às vezes, algo que nunca fiz é atribuído como projeto meu... Então, o que me interessa é um dia fazer tudo o que disseram que eu fiz. Agora, em vez de me irritar quando encontro um erro, esfrego as mãos e digo: "Ah ha!".

FOLHA - Então vou pensar em algo bem original...
CALLE
- Ok, mas publique o erro sem dizê-lo a ninguém (risos).


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