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"Minha vida é só o ponto de partida"
Ato de registrar morte da mãe ou de organizar leitura de carta de rompimento amoroso é fazer "boa obra de arte", diz Calle
Instalação em que outras mulheres interpretam fim de romance chega ao Brasil em 2009; obra antiga estará na 28ª Bienal de São Paulo
Sophie Calle
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Registro do projeto "Où et Quand' (2008), em que Calle viajou seguindo instruções de vidente; esta lhe pediu que comprasse flores para soldados mortos
GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA FOLHA, EM PARIS
Em 2005, Sophie Calle recebeu uma carta de rompimento
amoroso. "Cuide-se bem", dizia
o texto, ao fim. Sem saber o que
fazer com o papel e com a dor
que sentia, entregou a carta a
107 mulheres de variadas idades e profissões para que buscassem interpretações.
Fotografou-as, filmou-as, e o
resultado é "Prenez Soin de
Vous" (cuide-se bem), enorme
instalação em multimídia que a
artista francesa concebeu para
a Bienal de Veneza de 2007,
exibiu em Paris no início deste
ano e leva a três cidades brasileiras no ano que vem, em sua
primeira visita ao país -Calle
ainda estuda a possibilidade de
participar da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).
Nome de peso da arte conceitual francesa, Calle especializou-se em investigar e expor
traços da intimidade -sua ou
alheia -numa combinação de
biografia, ficção e voyeurismo.
"La Filature" (perseguição),
um de seus projetos mais antigos, de 1981, será exibido na 28ª
Bienal de SP, em outubro.
Poucos dias após apresentar
novo trabalho na galeria Emmanuel Perrotin, a artista recebeu a reportagem da Folha em
sua casa, em Malakoff, subúrbio ao sul de Paris. Entre beliscar um salame e acariciar o gato, falou sobre particularidades
do seu trabalho e a decisão de
filmar a morte de sua mãe.
FOLHA - Como será a sua primeira
passagem pelo Brasil?
SOPHIE CALLE - De repente, eu
me vi envolvida em muitos projetos. "Prenez Soin de Vous" vai
passar por três museus: em São
Paulo, no Sesc Pompéia, do fim
de julho ao fim de setembro de
2009; em Salvador, de outubro
a novembro; e no Rio, de dezembro a janeiro de 2010. Irei
para essa montagem. Além disso, há uma exposição coletiva
no Oi Futuro, no Rio, e tenho
convites para o Videobrasil e
para um evento literário em...
Pa-rat-y? Mas esse ainda não
sei se poderei aceitar, vai depender das datas. Não posso
passar quatro meses no Brasil...
FOLHA - Mas, antes de tudo isso, o
seu nome é um dos principais da 28ª
Bienal de São Paulo...
CALLE - Quanto à Bienal, não
houve muito o que decidir. Pegaram um projeto antigo ["La
Filature", 1981], ligaram sabendo bem o que queriam. Como é
um empréstimo de obra, os trâmites foram feitos pela galeria,
não me ocupei disso.
FOLHA - Você tem uma metodologia recorrente: cria um jogo com regras definidas. Como isso começou?
CALLE - Para dizer a verdade,
estava perdida em Paris, no fim
dos anos 70. Passei anos viajando e, ao voltar, não sabia o que
fazer da vida, não tinha amigos
nem emprego... Comecei a seguir pessoas na rua e a fazer fotos para me lembrar delas. Comecei a tomar notas para registrar aonde iam, criando uma ficha, como as de polícia. Foi um
meio de reencontrar minha cidade. As regras do jogo estão na
minha natureza. Quando era
pequena, ia ao cemitério, fazia
cerimônias de enterro para
meus bichos de estimação.
Sempre adorei rituais.
FOLHA - Seus projetos costumam
juntar texto e imagem. A foto nasce
baseada em texto ou é o contrário?
CALLE - No caso de um trabalho
como "Unfinished" [inacabado], vi as imagens antes e não
soube o que fazer com elas.
Procurei o texto por 15 anos.
Mas nunca me senti 100% à
vontade só com um ou outro.
Quando seguia pessoas na rua,
a necessidade de produzir imagens me obrigava a chegar mais
perto e, com isso, ter mais material para texto. As coisas estão
intrincadas. Mas, em geral, encontro a idéia primeiro -enviar algo a alguém, instalar-me
em tal endereço, idéias simples-, o resto vem depois.
FOLHA - Seus trabalhos costumam
ter boas doses autobiográficas. Como separa ficção e realidade?
CALLE - Não quero só expor minhas dores e sofrimentos. Minha vida é o ponto de partida,
mas o que me interessa é fazer
uma boa obra de arte, um livro
bem escrito, o que seja. Com
"Prenez Soin de Vous", vi logo o
que isso podia me trazer em
termos terapêuticos, mas, após
alguns dias, estava mais preocupada em saber se o resultado
ficaria bem na parede. Se for
pela terapia, outras coisas funcionam igual: viajar, comprar
um vestido, ir ao cabeleireiro...
FOLHA - Você há pouco tempo registrou em vídeo a morte de sua
mãe. Foi uma decisão artística?
CALLE - Minha mãe era vaidosa
e extravagante, adorava estar
no centro. Os médicos lhe deram um mês de vida. Eu gostaria de estar lá quando ela morresse, escutar suas últimas palavras. E, embora tenha me mudado para a casa dela, não podia
estar ali o tempo inteiro. Precisava dormir, fazer comida...
Num dado momento, disse a
ela que colocaria uma câmera.
Em vez de contar os dias que
faltavam para a morte dela,
passei a contar de forma obsessiva os minutos que faltavam
para trocar a fita, desloquei a
angústia. Quando ela morreu,
eu estava efetivamente presente, vi seu sorriso. Quanto ao
material, até agora não tive coragem de me debruçar sobre a
filmagem. Tenho 612 horas.
FOLHA - Mas como isso foi parar na
Bienal de Veneza?
CALLE - Publiquei um texto em
todos os jornais para anunciar
sua morte. Robert Storr [curador] me propôs expor esse texto e as imagens em vídeo na
Bienal. Eu disse: "Sinto muito.
Gostaria de fazer algo sobre a
morte da minha mãe, mas não
estou pronta". Ele insistiu. Justamente por não ser capaz de
assistir aos filmes, só vi um, o
último. O projeto saiu assim,
com esse texto e com minha incapacidade de ver os outros filmes. Foi uma homenagem... Se
ela tivesse morrido com convulsões, eu nunca mostraria,
mas ela morreu magnífica. Levá-la a Veneza deixou muita
gente horrorizada. Recebi cartas com insultos, mas a maior
parte dessas pessoas nem sequer viu o trabalho.
FOLHA - Feitiços podem virar contra o feiticeiro. Você já foi seguida?
CALLE - Uma estudante canadense recebeu uma bolsa para
me seguir e depois publicou
um livro. Mas ela se engana
muito. Foi aos bairros de que
gosto, fotografou a porta da minha casa, mas eu nunca estou
nas fotos. Assim fica meio fácil.
FOLHA - Ouvi dizer que você prepara um projeto usando o que os jornalistas escrevem a seu respeito...
CALLE - As entrevistas sempre
dão margem a mal-entendidos.
Volta e meia encontro erros ou
frases fora de contexto. Às vezes, algo que nunca fiz é atribuído como projeto meu... Então, o
que me interessa é um dia fazer
tudo o que disseram que eu fiz.
Agora, em vez de me irritar
quando encontro um erro, esfrego as mãos e digo: "Ah ha!".
FOLHA - Então vou pensar em algo
bem original...
CALLE - Ok, mas publique o erro
sem dizê-lo a ninguém (risos).
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