São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Catarse da vergonha


Diário de historiadora que participou da Resistência ao nazismo expõe culpa pela França colaboracionista

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"RESISTÊNCIA", DIÁRIO da francesa Agnès Humbert, que viveu na clandestinidade durante a ocupação nazista, traz a seguinte questão: por que certas experiências exigem novas formas de expressão, a ponto de criarem um novo gênero ou subgênero literário?
Num célebre ensaio intitulado "Semiótica dos Conceitos de Vergonha e Medo", Iuri Lotman descreveu a dinâmica do nosso comportamento pela alternância entre dois impulsos.
O medo definiria a reação do indivíduo a um elemento externo, a grupos cujas normas lhe são estranhas e ameaçadoras. Já a vergonha definiria a relação interna de um grupo no qual a violação das regras compartilhadas desencadeia o temor da exclusão. Lotman não quis com isso esgotar a gama das relações intersubjetivas.
O fato, porém, é que em situações extremas esse binômio passa a definir a cultura de uma época, a ponto de criar formas de simbolizar tais sentimentos.
É o caso do terror e da culpa que marcaram a experiência de quem -como Agnès Humbert- viveu a Segunda Guerra Mundial.
O horror da destruição total, representada pelos campos de extermínio, acabou criando um tipo de relato conhecido como "literatura de testemunho", como as memórias de Primo Levi e Elie Wiesel. Na França, país até hoje constrangido pelo passado "colaboracionista", surgiu outra tradição narrativa: os relatos da Resistência, daquela minoria que se rebelou e sobreviveu para fazer a catarse coletiva.
"Resistência" se insere nesse subgênero, em que as convenções do registro confessional se invertem: em vez de mostrar a vergonha daquele que confessa sentimentos que o apartam da coletividade, o relato do resistente tenta provar que ele possui uma sanidade exemplar, oculta na vergonha coletiva.
Historiadora de arte em Paris, Agnès Humbert começou a redigir seus diários quando a invasão alemã era iminente, interrompendo-os em 1941, ao ser presa por envolvimento no grupo resistente liderado por Boris Vildé. Após a guerra, retomou o trabalho de reconstituição que resultou no livro, cujo título brasileiro remete ao jornal que ela editava na clandestinidade.
O terror do cárcere (incluindo a comovente cena em que seus companheiros escutam impávidos a sentença de morte) ocupa boa parte do livro. Mas os trechos mais significativos correspondem aos meses que precedem a prisão e ao momento em que, após a Libertação, ela se empenha na caça aos nazistas.
Pois, enquanto luta contra os carrascos, ela antevê o embate com outro inimigo, mais insidioso: os "camaleões" morais que, passado o pesadelo, continuam morando na casa ao lado.

RESISTÊNCIA
Autora: Agnès Humbert
Tradução: Regina Lyra
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 39,90 (344 págs.)
Avaliação: bom



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