|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Crítica/"Rimas da Vida e da Morte"
Amós Oz transforma incertezas em possibilidades de salvação
Autor volta a usar confusão entre "ficção" e "real" como antídoto para certezas fanáticas
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Em "História de Amor e
de Trevas", uma autobiografia de sua infância, Amós Oz conta que, ainda
pequeno, quando sua mãe o levava a uma sorveteria e o obrigava a ficar calado, sua alternativa era ficar olhando para as
pessoas e inventar histórias para elas. Nomes, profissões,
idiossincrasias, amores, tudo.
Já em "Contra o Fanatismo",
o autor narra a mesma mania e
acrescenta que inventar histórias seja talvez o maior e o único remédio contra essa doença
que tem tomado conta do mundo. Em seu último livro, "Rimas
da Vida e da Morte", a prática
de inventar histórias para as
pessoas é o próprio enredo.
Mas qual romance não exercita
isso? Todos. Mas, aqui é diferente. Oz cria um personagem,
escritor desiludido, embora
bem-sucedido, que brinca de
inventar histórias sobre o público que vai assisti-lo na leitura de um de seus romances.
Resultado: uma metainvenção. Um personagem inventado que inventa personagens.
Embarcamos, assim, numa invenção dupla, até chegar um
momento em que o próprio
protagonista começa a perder
sua legitimidade narrativa e
desconfiamos de que ele também seja uma invenção de algum outro narrador.
Geralmente, quando lemos
um livro, fazemos como Coleridge aconselhou: praticamos a
suspensão da descrença ("suspension of disbelief") e acreditamos em tudo, por absurdo
que seja, em nome do fluxo narrativo. Esse é um dos maiores
prazeres da literatura: acreditar. Mas a metalinguagem cria
uma certa desconfiança e um
nó no leitor. Afinal, no que podemos confiar aqui? A melhor
resposta, sem dúvida, é: em tudo. Porque tudo, em literatura e
provavelmente também fora
dela, é invenção. Quando percebemos, estamos torcendo pelo desenrolar das ações dos personagens inventados, sabendo
que sua vida não passa de especulação da cabeça do escritor.
Invenções
Uma descrição de um personagem falso, que, de início, parece estereotipada ("ali está
uma mulher corpulenta, que já
abandonou há anos todas as
dietas e esforços para emagrecer, já desistiu da forma física e
decidiu galgar esferas mais elevadas") vai, aos poucos, tornando-se afetuosa, e o autor desencantado também vai se enamorando de suas invenções ("Debaixo de seu discurso inflamado, brota sempre, sem nenhuma exceção, uma espécie de
borrifo de alegria que emana
das profundezas, uma corrente
do Golfo de cordialidade e de
exultante bondade").
E todas essas invenções são
espelhadas, entremeadas com
rimas ingênuas de um autor
também imaginário (mas agora
a imaginação é muito mais verdadeira do que todo o resto),
autor de um livro chamado:
"Rimas da Vida e da Morte".
"Tem o sábio sem juízo/ e tem o
tolo muito sério/ tem o pranto
após o riso/ mas quem sabe o
próprio mistério?"
Para os pragmáticos que pensam que sabem alguma coisa
sobre seu mistério e que se satisfazem com opiniões prontas
sobre as coisas e as pessoas, ou
seja, para os muito seguros de si
(meio caminho para o fanatismo), um bom remédio é rimar a
vida com a morte, a mentira
com a verdade e perceber que o
"caminho certo" é a ponte mais
óbvia para o erro.
RIMAS DA VIDA E DA MORTE
Autor: Amós Oz
Tradução: Paulo Geiger
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (120 págs.)
Avaliação: ótimo
TRECHO
Existem respostas espertas
e existem respostas evasivas.
Respostas simples e diretas
não existem.
Portanto, o escritor irá se
sentar num pequeno café a
três ou quatro ruas de
distância do prédio do Centro
Comunitário Shunia Shor,
onde se realizará o sarau
literário. O espaço do café lhe
parece acachapado e escuro,
sufocante, por isso bem
adequado a este momento. Ali
ele se sentará e tentará se
concentrar naquelas
perguntas (no curso de sua
vida ele tem chegado aos
lugares meia hora ou 40
minutos adiantado, tendo
sempre de achar o que fazer
até a hora marcada). Em vão
tenta a cansada garçonete de
saia curta e busto empinado
enxugar para ele o tampo da
mesa: a superfície de fórmica
continua um tanto pegajosa,
mesmo depois de passado o
pano. Não estaria o próprio
pano pouco limpo?
Enquanto isso, o escritor
observa as pernas da
garçonete [...]
Extraído de "Rimas da Vida e
da Morte", de Amós Oz
Texto Anterior: Crítica/"Lina Bo Bardi": Livro traz trajetória conflituosa de artista Próximo Texto: Vitrine Índice
|