São Paulo, quinta-feira, 20 de outubro de 2005

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29ª MOSTRA DE CINEMA

Novo filme do canadense David Cronenberg investiga a violência como parte da sexualidade humana; longa é um dos destaques entre os 350 filmes da programação da 29ª Mostra de Cinema de SP, que começa hoje

Múltiplos olhares

JAMES MOTTRAM
DO "INDEPENDENT"

O canadense David Cronenberg, 62, já foi descrito como o "barão do sangue", por dirigir uma série de filmes de terror viscerais, começando com "Shivers", em 1975. Mas já ficou para trás o tempo em que produziu sucessos comerciais, como "Scanners - Sua Mente Pode Explodir" e "A Mosca", o remake ensangüentado de 1986 que marcou o fim da primeira fase de sua carreira.
Inaugurado pelo terror "Gêmeos, Mórbida Semelhança", o segundo período de sua obra vem sendo marcado por uma progressão em direção a um jeito mais cerebral de fazer cinema, quer em histórias de perversão sexual, como "M. Butterfly" e "Crash - Estranhos Prazeres", quer em explorações de realidades alucinógenas ("Mistérios e Paixões"), virtuais ("eXistenZ") ou esquizofrênicas ("Spider - Desafie Sua Mente").
"Marcas da Violência", que se destaca na programação da 29ª Mostra de Cinema de São Paulo, talvez aponte ao início da fase três: uma união das preocupações psicológicas recentes de Cronenberg com o fascínio perene pelo corpo.
Seu novo filme conta a história de Tom Stall (Viggo Mortensen), dono de um restaurante numa cidade pequena em Indiana cuja vida é perturbada quando se vê forçado a defender seu estabelecimento contra dois bandidos. Depois de matá-los a tiros, vira celebridade da mídia local, atraindo a atenção de figuras de seu passado.
Cronenberg leva adiante o interesse pela necessidade de construir identidades. "Não acho que a identidade seja algo que nos é dado geneticamente, como a cor de nossos olhos", diz o diretor. "É algo que é criado. Existe uma vontade envolvida. Em "Spider", eu tratei do mesmo tema: o que acontece quando não existe a vontade ou a força para segurar uma identidade, para mantê-la coesa. Acho que a gente acorda todas as manhãs e precisar se lembrar de quem é e recriar-se, montar aquela pessoa de novo. É possível nos tornarmos outra pessoa através da força da vontade."
Usando metáforas genéricas para transmitir temas complexos, o filme é um híbrido de dois pratos fortes do cinema americano: o filme de gângster e o faroeste. "Eu sabia desde o início que havia uma mitologia americana épica, de faroeste, envolvida nessa história. É uma premissa americana clássica tanto na história quanto no cinema americanos."
Mesmo assim, Cronenberg se prepara para uma possível reação de furor. Embora hoje estejamos vivendo com a consciência da necessidade de defender o uso de seqüências violentas.
"Essas cenas são muito curtas. Mas será que se pode dizer que é melhor não mostrar as conseqüências da violência? A idéia é justamente dizer que essa violência é real. Ela tem um impacto nada agradável sobre o corpo humano. Não estamos fazendo uma fantasia de kung fu. Este não é um filme de artes marciais dos anos 70. Mostramos que a violência é muito cruel, muito brutal, muito rápida, muito imprevisível e tem conseqüências horrendas."
Embora Cronenberg nunca tenha sido um cineasta que se proponha a criar polêmica, alguns críticos já aventam a idéia de que "Marcas da Violência" possa ser uma alegoria da invasão do Iraque -já que Stall defende sua casa agressivamente contra insurgentes vindos do "oriente".
Cronenberg não fala em termos muito específicos, mas reconhece que o filme pode ser visto como uma crítica à administração Bush, que "adotou a mitologia de violência dos EUA como sua política externa" -uma postura agressiva, mas não sofisticada, na linha de "fomos atacados, portanto, qualquer coisa que façamos para nos defender é justificada".
Contudo, a cena mais violenta não tem tiros. Ela acontece quando Stall força sua mulher a fazer sexo com ele, na escada de sua casa. "A violência faz parte da sexualidade", diz o diretor. "É muito possível, talvez até inevitável, que a violência esteja incorporada à sexualidade. E também existe um fator sexual na violência. Existe um elemento estranhamente sexual nas execuções promovidas pelo Estado, por exemplo. É um tema difícil e demorado, mas é verdade, sim, que sexo e violência parecem combinar muito bem."


Tradução Clara Allain

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