São Paulo, quinta, 20 de novembro de 1997.




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ARTIGO
Arte/Cidade 3 revela espaços esquecidos e invisíveis de São Paulo

LORENZO MAMMI
especial para a Folha

Desde a primeira exposição, no antigo matadouro, o Arte/Cidade procurou garimpar espaços que estivessem de alguma forma esquecidos ou invisíveis -invisibilidade de significados, que não exclui uma visibilidade física gritante, como o Vale de Anhangabaú, onde foi realizado o segundo bloco do projeto.
O Arte/Cidade 2, de fato, tratava de uma invisibilidade de superfície. O Arte/Cidade 3, ao contrário, descobriu uma cidade morta nas entranhas da cidade atual. O dado que mais impressiona, nessas ruínas, é menos a monumentalidade do que a proximidade de lugares densamente frequentados.
Surpreende nunca termos visto esses espaços, como não vemos os trens que atravessam quotidianamente a cidade. À diferença de Rio ou Salvador (para não falar das metrópoles européias e norte-americanas), São Paulo é uma cidade cega, que não vê a si mesma. O grande mérito do Arte/Cidade é remexer nessa cegueira, cutucar a amnésia coletiva, não tanto de um ponto de vista documentário, mas no plano do imaginário.
Ao trabalhar a cidade invisível como objeto visual e não apenas como história, faz com que ela seja percebida como algo que está aqui e agora, não só como signo do passado ou possibilidade no futuro. E nos obriga, por tabela, a nos interrogarmos sobre o fato de nunca a termos visto.
Contudo, o projeto parece-me estar numa encruzilhada: até agora, apresentou-se como exposição de arte, mas essa classificação torna-se sempre mais problemática. A arte não é a única maneira de intervir visualmente num espaço, embora tradicionalmente seja a mais prestigiosa. Mesmo em suas formas mais abertas (instalação, "site specific", "land art"), a obra de arte possui suas regras, sem as quais simplesmente desaparece como objeto estético: quando se instala num espaço, chama-o a si, faz dele o espaço da obra; e seu significado pertence à história da arte (às outras obras), mais do que a um espaço ou a uma coletividade, ainda que possa incidir sobre eles.
Nisso está sua autonomia, que não pode ser revogada. Mas é isso, justamente, que a torna difícil de ser manuseada, quando o discurso que se pretende fazer com ela não é propriamente ou apenas estético. O problema do Arte/Cidade 3, enquanto exposição de arte, não é a falta de boas obras (há algumas, embora não muitas, e pelo menos duas bastante significativas): o problema é que, se as obras fossem outras, o significado da exposição seria mais ou menos o mesmo.
Talvez isso se deva a uma evolução natural: à medida que avança, o projeto adquire espessura, seu sentido se solidifica. Por isso mesmo, o espaço de manobra dos artistas se estreita, e as possibilidades de gerar um significado autônomo se reduzem. Ou talvez a crise surja por termos chegado, dessa vez, ao cerne da questão: São Paulo não nasceu de um conjunto de moradias, mas de uma empreitada industrial, que já embutia em si toda a violência posterior.
A descoberta da cena do crime, a exumação do cadáver é tão impactante que não deixa espaço para comentários. As obras ficam à margem. Quem sabe não seja o caso, em vista de um Arte/Cidade 4, de mudar radicalmente de fórmula, pensar em algo que não seja propriamente uma exposição, ainda que conte com a participação de um ou outro artista.
No entanto, como disse, há pelo menos dois artistas que conseguiram se inserir com autoridade no projeto -não por serem necessariamente mais hábeis ou inspirados do que outros, mas por terem linhas de pesquisas que os colocam naturalmente na nova situação, sem sacrifício nem soluções forçadas.
O primeiro é Nelson Félix, que despontou recentemente como um nome de peso nacional, com duas esculturas que foram a melhor obra brasileira na última Bienal de São Paulo: naquela ocasião, duas grandes formas suspensas de mármore branco reproduziam seções do cérebro humano, mas, para um espectador desavisado, mais lembravam dois cetáceos encalhados. No chão, abaixo delas, havia fendas úmidas, como se daquelas formas pingasse uma secreção capaz de corroer o concreto. Era um trabalho baseado numa idéia do orgânico como metamorfose, geração e degeneração contínua de formas. A intervenção no Moinho Central vai na mesma direção.
O Moinho é um edifício de seis andares, de que sobraram pavimentos e vigas e quase nenhuma parede. Do ponto de vista formal, um prédio de múltiplos andares é uma diagramação do vazio, uma tentativa de reduzir o espaço aéreo em paralelepípedos.
Num prédio em ruínas, o espaço aéreo reconquista seus direitos: algumas divisões permanecem, mas revelam toda sua precariedade; o chão em que pisamos já não é tão chão como antes. Nelson Félix recortou grandes quadrados de concreto em um dos pavimentos, e os suspendeu por cabos de aço a poucos centímetros do chão do andar de baixo. A sensação de alarme, proporcionada pelo equilíbrio precário das grandes massas de concreto, mistura-se ao fascínio pela multiplicação de perspectivas que os recortes proporcionam, reproduzindo, na vertical, a mesma fuga perspectiva que a derrubada das paredes criou na horizontal. A destruição da arquitetura, antes de chegar ao mero informe, gera uma multiplicação de possibilidades formais -uma metástase perspectiva, como numa Prigione de Piranesi.
A outra artista que alcançou êxito pleno foi Laura Vinci. Aqui também a estrutura da obra transgride a estrutura do espaço, com sua divisão por pavimentos. Nesse caso, porém, não há recortes brutais: apenas um pequeno buraco, que deixa cair um sutil fio de areia. No andar de cima, a areia, amontoada na curva redonda de uma duna, abre-se progressivamente numa cratera, escorrendo para o andar de baixo. Uma construção em ruínas é uma construção que não consegue mais estancar o tempo. A areia é tempo enquanto erosão e tempo enquanto ampulheta. Mas, sobretudo, é tempo enquanto movimento que depende do vento, da umidade, do peso variável dos grãos e, no entanto, acaba criando formas perfeitas pela sua própria entropia, que equilibra e anula cada movimento com um movimento oposto.
Assim, o monte de areia torna-se forma exemplar de contínuo temporal, em oposição ao edifício, forma exemplar da descontinuidade da história. E a areia recobre esse cubo industrial com a mesma regularidade inexorável e doce com que já recobriu as pirâmides do Egito. No fundo, a coluna de areia que oscila ao vento no Moinho Central, medindo a distância temporal entre teto e pavimento, é uma versão mais incorpórea de outros trabalhos da artista: listras escuras que sugerem uma verticalidade possível ou serpenteiam no chão, deixando adivinhar uma curva invisível na atmosfera. De fato, desde que começou a fazer esculturas, Laura Vince busca pontuações rítmicas do espaço vazio, mais do que volumes construídos.
O êxito dos trabalhos de Nelson Félix e Laura Vince se deve sobretudo, a meu ver, ao fato de terem encarado o Moinho Central como um problema formal e não apenas como tema ou cenário. Assim, a história do edifício insere-se numa questão bem mais ampla: o contraste entre espaços ilimitados e construídos, tempos infinitos e descontínuos. O caráter individual e histórico do lugar não se dilui por isso -ao contrário, adquire maior pungência. E a obra de arte cumpre a função que, afinal, lhe compete desde sempre: gerar identidade entre particular e universal.


Lorenzo Mammi, 40, é crítico de arte
Evento: Arte/Cidade 3 Onde: projeto de intervenção urbana entre a estação da Luz e as indústrias Matarazzo (entrada e estacionamento na av. Francisco Matarazzo, 1.096), com obras de 37 artistas Quando: de ter. a dom., das 12h às 21h. Até 30 de novembro Quanto: entrada franca


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