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CRÍTICA
"Cena" se perde no labirinto da metalinguagem
XICO SÁ
CRÍTICO DA FOLHA
Dizer que os diretores Guel
Arraes e Jorge Furtado não
são competentes é dizer besteira.
Falaremos dos vícios, não das
pessoas, como recomendam os
beneditinos. Os rapazes são engenhosos, têm repertório e representam, de algum modo, um ideal
do que se acostumou chamar de
"produto de qualidade" da recente safra de TV.
A atriz Regina Casé inaugurou,
tempos atrás, com suposta carga
etnográfica, mas ainda sem a devida bênção do gênio Câmara
Cascudo, o filão que desembocaria em uma certa "brasilidade"
praticada pela Globo. Algo que
funcionou bem como uma purgação de culpa da emissora, historicamente acusada por adornianos
e ignorantes panfletários como
este cronista, de pisotear a língua
"baiana" e os costumes regionais.
Arraes, Furtado e Casé comandam o "Cena Aberta", programa
que estreou na última terça na
Globo. O tema é a metalinguagem. Aquela coisa de discutir a
coisa, a coisa em si, a própria coisa
sobre a mesma coisa, o espelho, o
seu duplo... Televisão sobre televisão, a partir de narrativas da literatura brasileira.
Na sua primeira e pretensa lição
de alteridade, o programa convocou as Macabéas, essas moças que
guardam suas dores "paraíbas"
em quartos de pensão ou cubículos de empregada. Qualquer uma,
entre as escolhidas pela produção,
poderia representar, sem maquiagem ou cuidado, a personagem de
"A Hora da Estrela", da ucraniana
Clarice Lispector (1920-1977).
O personagem começou a ser
definido, por Casé, com a seguinte pergunta: "Quem aqui tem cara
de nordestina?". A atriz fez graça e
disse que ela mesma era uma típica representante.
Passou a discutir, então, a verossimilhança a partir do figurino
das candidatas a Macabéa. O vestidinho brejeiro é cearense, a calça
jeans cortada no meio da canela é
carioca. Um rápido debate à toa,
como se houvesse diferença nos
tabuleiros e araras de camelôs e
C&A's da vida. Mas aí viria a ótima surpresa do "Cena Aberta",
Clarice Lispector em carne e osso,
ali na tela, em imagens de arquivo, a derreter a maquiagem como
uma legítima Macabéa.
Doía-se toda, como a personagem. Coisa que as nordestinas
convidadas até ensaiaram, mas
não deram conta. Não por falta de
dores universais -Tolstói mora
nas veias de todo mundo-, mas
pelo excesso de metalinguagem e
enxerimento da narradora Casé.
Até na hora de atravessar na contramão, ouviu-se um "chama o
dublê" -gracinha que não ornou
com os mistérios de Clarice.
Distanciamento brechtiano fora
de hora e lugar.
Cena Aberta
Quando: terça, às 22h45, na Globo
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