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São Paulo, quinta-feira, 20 de novembro de 2003

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CRÍTICA

"Cena" se perde no labirinto da metalinguagem

XICO SÁ
CRÍTICO DA FOLHA

Dizer que os diretores Guel Arraes e Jorge Furtado não são competentes é dizer besteira. Falaremos dos vícios, não das pessoas, como recomendam os beneditinos. Os rapazes são engenhosos, têm repertório e representam, de algum modo, um ideal do que se acostumou chamar de "produto de qualidade" da recente safra de TV.
A atriz Regina Casé inaugurou, tempos atrás, com suposta carga etnográfica, mas ainda sem a devida bênção do gênio Câmara Cascudo, o filão que desembocaria em uma certa "brasilidade" praticada pela Globo. Algo que funcionou bem como uma purgação de culpa da emissora, historicamente acusada por adornianos e ignorantes panfletários como este cronista, de pisotear a língua "baiana" e os costumes regionais.
Arraes, Furtado e Casé comandam o "Cena Aberta", programa que estreou na última terça na Globo. O tema é a metalinguagem. Aquela coisa de discutir a coisa, a coisa em si, a própria coisa sobre a mesma coisa, o espelho, o seu duplo... Televisão sobre televisão, a partir de narrativas da literatura brasileira.
Na sua primeira e pretensa lição de alteridade, o programa convocou as Macabéas, essas moças que guardam suas dores "paraíbas" em quartos de pensão ou cubículos de empregada. Qualquer uma, entre as escolhidas pela produção, poderia representar, sem maquiagem ou cuidado, a personagem de "A Hora da Estrela", da ucraniana Clarice Lispector (1920-1977).
O personagem começou a ser definido, por Casé, com a seguinte pergunta: "Quem aqui tem cara de nordestina?". A atriz fez graça e disse que ela mesma era uma típica representante.
Passou a discutir, então, a verossimilhança a partir do figurino das candidatas a Macabéa. O vestidinho brejeiro é cearense, a calça jeans cortada no meio da canela é carioca. Um rápido debate à toa, como se houvesse diferença nos tabuleiros e araras de camelôs e C&A's da vida. Mas aí viria a ótima surpresa do "Cena Aberta", Clarice Lispector em carne e osso, ali na tela, em imagens de arquivo, a derreter a maquiagem como uma legítima Macabéa.
Doía-se toda, como a personagem. Coisa que as nordestinas convidadas até ensaiaram, mas não deram conta. Não por falta de dores universais -Tolstói mora nas veias de todo mundo-, mas pelo excesso de metalinguagem e enxerimento da narradora Casé. Até na hora de atravessar na contramão, ouviu-se um "chama o dublê" -gracinha que não ornou com os mistérios de Clarice.
Distanciamento brechtiano fora de hora e lugar.


Cena Aberta  
Quando: terça, às 22h45, na Globo



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