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RODAPÉ
O efeito contagioso de Deus
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Desde o início da "era moderna", no século 17, estamos habituados a pensar na ciência como o oposto da religião. Enquanto esta se baseia no mistério,
na revelação e no dogma, a ciência opera com "idéias claras e distintas", verificação empírica, indução e dedução.
Obviamente, isso não cancela a
longa história de identificação da
filosofia com a teologia, no fim da
Antigüidade e durante toda a Idade Média (patrística, Agostinho,
Tomás de Aquino), da mesma
maneira que muitos pensadores e
cientistas modernos foram crentes que tentaram "salvar" Deus
por meio do deísmo (que reduzia
o ser supremo a uma intuição intelectual, o "deus dos filósofos")
ou de uma religião natural na qual
deveríamos reconhecê-lo "por toda parte" (nas palavras ambíguas
de Diderot, que sugerem que esse
Deus não está em parte alguma).
De todo modo, a história da
ciência e do pensamento ocidental descreve um progressivo afastamento do fundamento divino,
um "desencantamento do mundo" compensado pela capacidade
de autodeterminação do homem.
Por isso, permanece sendo um
enigma a obra de Pascal (1623-1662), o filósofo que foi, ao mesmo tempo, "o melhor físico de sua
época, o experimentador mais
prudente, hábil e fino" (segundo
Michel Serres) e um religioso às
portas do misticismo, passando
os últimos dias escrevendo fragmentos de uma apologia do cristianismo que, recolhidos após sua
morte precoce, seriam publicados
sob o título "Pensamentos"
(obra-prima da literatura francesa).
Essa convergência de ciência experimental e abismo metafísico é
o tema de "Conhecimento na
Desgraça - Ensaio de Epistemologia Pascaliana", de Luiz Felipe
Pondé. Professor de Ciências da
Religião na PUC de São Paulo,
Pondé é um ensaísta virulento,
um teólogo sem qualquer vestígio
de pietismo, para quem a religião
assume no mundo contemporâneo um papel decisivo como crítica do dogmatismo ou otimismo
humanista.
Num livro anterior, "O Homem
Insuficiente" (também da
Edusp), ele já fizera uma leitura de
Pascal como aríete contra a "ilusão" de auto-suficiência com que
as promessas da ciência nos acostumaram. Em "Conhecimento na
Desgraça", Pondé retoma o tema
da "insuficiência" para mostrar
como os "Pensamentos", os "Escritos sobre a Graça" e os tratados
pascalianos sobre o vácuo e o "espírito geométrico" determinam
uma epistemologia que dissolve a
noção tradicional de natureza.
Insuficiência é um termo que
designa a condição do homem
após o pecado original, a dupla
consciência de sua condição sobrenatural ("o homem ultrapassa
infinitamente o homem") e de seu
abandono metafísico (necessidade da graça divina para realizar
seu destino).
Nos aforismos pascalianos, a insuficiência se conecta a alguns termos-chaves que apontam para a
contingência radical do saber:
"desproporção" do homem entre
dois infinitos (Deus e o apavorante "silêncio eterno dos espaços infinitos"), "equivocidade do sentido" e "ennui" (angústia, tédio).
A "ausência de critérios de estar
certo ou errado", porém, não redunda em dogmatismo negativo,
em juízo sobre a falsidade de todo
conhecimento -e sim numa sofisticada multiplicação de pontos
de vista, que Pondé chama de
"provincianismo cognitivo".
"A geometria não pode definir
os objetos, nem provar os princípios", escreve Pascal. Ou seja, a
racionalidade local de um fenômeno não pode ser exportada para o conjunto do mundo, configurando (como em Descartes) uma
"Mathesis universalis" que nos
conduziria de razão em razão até
o "primeiro motor" da natureza
(Deus).
Em Pascal, o tema agostiniano
do "Deus escondido" leva a um
saber científico que abdicou das
essências, que lida apenas com
"relações"; o método só existe em
função de determinadas regiões
da experiência, mas a própria experiência (e, por extensão, a natureza) só tem espessura ontológica
dentro do método.
Com o Pascal de Pondé, enfim,
estamos próximos do positivismo
lógico -com a diferença fundamental de que, no caso, "esse desastre completo na cognição é o
"efeito contagioso" da insuficiência teológica".
Conhecimento na Desgraça
Autor: Luiz Felipe Pondé
Editora: Edusp
Quanto: R$ 17 (104 págs.)
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