São Paulo, sábado, 20 de novembro de 2004

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RODAPÉ

O efeito contagioso de Deus

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Desde o início da "era moderna", no século 17, estamos habituados a pensar na ciência como o oposto da religião. Enquanto esta se baseia no mistério, na revelação e no dogma, a ciência opera com "idéias claras e distintas", verificação empírica, indução e dedução.
Obviamente, isso não cancela a longa história de identificação da filosofia com a teologia, no fim da Antigüidade e durante toda a Idade Média (patrística, Agostinho, Tomás de Aquino), da mesma maneira que muitos pensadores e cientistas modernos foram crentes que tentaram "salvar" Deus por meio do deísmo (que reduzia o ser supremo a uma intuição intelectual, o "deus dos filósofos") ou de uma religião natural na qual deveríamos reconhecê-lo "por toda parte" (nas palavras ambíguas de Diderot, que sugerem que esse Deus não está em parte alguma).
De todo modo, a história da ciência e do pensamento ocidental descreve um progressivo afastamento do fundamento divino, um "desencantamento do mundo" compensado pela capacidade de autodeterminação do homem.
Por isso, permanece sendo um enigma a obra de Pascal (1623-1662), o filósofo que foi, ao mesmo tempo, "o melhor físico de sua época, o experimentador mais prudente, hábil e fino" (segundo Michel Serres) e um religioso às portas do misticismo, passando os últimos dias escrevendo fragmentos de uma apologia do cristianismo que, recolhidos após sua morte precoce, seriam publicados sob o título "Pensamentos" (obra-prima da literatura francesa).
Essa convergência de ciência experimental e abismo metafísico é o tema de "Conhecimento na Desgraça - Ensaio de Epistemologia Pascaliana", de Luiz Felipe Pondé. Professor de Ciências da Religião na PUC de São Paulo, Pondé é um ensaísta virulento, um teólogo sem qualquer vestígio de pietismo, para quem a religião assume no mundo contemporâneo um papel decisivo como crítica do dogmatismo ou otimismo humanista.
Num livro anterior, "O Homem Insuficiente" (também da Edusp), ele já fizera uma leitura de Pascal como aríete contra a "ilusão" de auto-suficiência com que as promessas da ciência nos acostumaram. Em "Conhecimento na Desgraça", Pondé retoma o tema da "insuficiência" para mostrar como os "Pensamentos", os "Escritos sobre a Graça" e os tratados pascalianos sobre o vácuo e o "espírito geométrico" determinam uma epistemologia que dissolve a noção tradicional de natureza.
Insuficiência é um termo que designa a condição do homem após o pecado original, a dupla consciência de sua condição sobrenatural ("o homem ultrapassa infinitamente o homem") e de seu abandono metafísico (necessidade da graça divina para realizar seu destino).
Nos aforismos pascalianos, a insuficiência se conecta a alguns termos-chaves que apontam para a contingência radical do saber: "desproporção" do homem entre dois infinitos (Deus e o apavorante "silêncio eterno dos espaços infinitos"), "equivocidade do sentido" e "ennui" (angústia, tédio).
A "ausência de critérios de estar certo ou errado", porém, não redunda em dogmatismo negativo, em juízo sobre a falsidade de todo conhecimento -e sim numa sofisticada multiplicação de pontos de vista, que Pondé chama de "provincianismo cognitivo".
"A geometria não pode definir os objetos, nem provar os princípios", escreve Pascal. Ou seja, a racionalidade local de um fenômeno não pode ser exportada para o conjunto do mundo, configurando (como em Descartes) uma "Mathesis universalis" que nos conduziria de razão em razão até o "primeiro motor" da natureza (Deus).
Em Pascal, o tema agostiniano do "Deus escondido" leva a um saber científico que abdicou das essências, que lida apenas com "relações"; o método só existe em função de determinadas regiões da experiência, mas a própria experiência (e, por extensão, a natureza) só tem espessura ontológica dentro do método.
Com o Pascal de Pondé, enfim, estamos próximos do positivismo lógico -com a diferença fundamental de que, no caso, "esse desastre completo na cognição é o "efeito contagioso" da insuficiência teológica".


Conhecimento na Desgraça
    
Autor: Luiz Felipe Pondé
Editora: Edusp
Quanto: R$ 17 (104 págs.)



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