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LIVROS
ROMANCE
O escritor búlgaro narra a história de um erudito alérgico à humanidade
Elias Canetti exorciza seus fantasmas em "Auto-de-Fé"
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
"Auto-de-Fé " (1935), de
Elias Canetti (1905-94),
mais do que um romance, é uma
raridade, um fenômeno único na
literatura moderna. Tão único,
aliás, como seu autor.
Existem obras que já nasceram
surpreendentemente maduras da
cabeça de um jovem estreante. E
tampouco faltaram escritores
que, após uma estréia notável,
não conseguiram, seja por falta de
talento ou sorte, seja simplesmente porque morreram em seguida,
repetir seu primeiro feito.
Mas um caso como o da presente obra-prima, escrita por alguém
não tão jovem (pelo menos se
comparado a romancistas que se
lançaram no fim da adolescência), alguém que, após ter posto
no papel sua grande narrativa ficcional, deixou a ficção de lado,
beira o excêntrico. Pois, se ele a
abandonou, ainda assim continuou praticando a literatura por
mais meio século. E eis aqui o que
havia de realmente peculiar na
trajetória desse autor: ele se dedicava a um gênero, compunha,
sem tentativas e erros aparentes,
algo notável e, então, mudava-se
para o gênero seguinte.
Deste modo surgiram seus poucos ensaios, suas igualmente poucas peças teatrais, seus três volumes autobiográficos, seu tratado
indefinível (filosófico? sociológico? antropológico?) "Massa e Poder", suas coleções de observações e aforismos que são, a rigor,
um só fluxo contínuo de consciência, seu livro de viagem ("Vozes de Marrakesh") e mais alguns
textos quase inclassificáveis como
os que compõem "A Testemunha
Auricular".
Diferentes culturas
Canetti se relacionava com os
gêneros tão peculiarmente quanto o fez com línguas e países. Embora escrevesse sobretudo em alemão, esta não era sua primeira
língua. Seus idiomas de infância
foram o ladino (variante medieval
do castelhano que os judeus expulsos da Espanha em 1492 continuaram a falar no sul da Europa e
no norte da África), o búlgaro e o
inglês. Nascido na Bulgária, ele
descendia de uma, ou melhor, várias culturas diferentes: a do judeus sefarditas e a de Viena da
monarquia austro-húngara. Depois de passar a juventude na
Áustria, na Alemanha e na Suíça,
ele se fixou na Inglaterra.
Seu romance, a história de um
sinólogo apaixonado por livros e
alérgico à humanidade, o possuidor da maior biblioteca da cidade,
é não apenas um exame do caos
com que a realidade invade e contamina a mais ordeira das mentes,
como uma descrição não ou antipsicanalítica da loucura e também a exposição de uma misantropia fracassada. Basta percorrer
seus outros escritos para entrever
que, em "Auto-de-Fé", o autor
conjurou os próprios fantasmas,
lançando mão de sua arte menos
para exorcizá-los do que para colocá-los, obedientes, a seu serviço.
Seus admiradores mais argutos,
como o germanista triestino
Cláudio Magris, vêem neste o seu
livro fundamental, aquele no qual
expôs o que queria, limitando-se,
depois, a repeti-lo de formas diferentes ou a compor variações sobre seus temas. Talvez. Mas, como
no século que passou houve raros
pensadores dispostos a tematizar
tão desencantada, meticulosa e
cruelmente a natureza humana,
cada qual de seus tomos acrescenta detalhes preciosos aos anteriores, formando afinal um conjunto
articulado, este sim indispensável.
Auto-de-Fé
Autor: Elias Canetti
Tradução: Herbert Caro
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 59 (600 págs.)
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