São Paulo, sábado, 20 de novembro de 2004

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LIVROS

ROMANCE

O escritor búlgaro narra a história de um erudito alérgico à humanidade

Elias Canetti exorciza seus fantasmas em "Auto-de-Fé"

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

"Auto-de-Fé " (1935), de Elias Canetti (1905-94), mais do que um romance, é uma raridade, um fenômeno único na literatura moderna. Tão único, aliás, como seu autor.
Existem obras que já nasceram surpreendentemente maduras da cabeça de um jovem estreante. E tampouco faltaram escritores que, após uma estréia notável, não conseguiram, seja por falta de talento ou sorte, seja simplesmente porque morreram em seguida, repetir seu primeiro feito.
Mas um caso como o da presente obra-prima, escrita por alguém não tão jovem (pelo menos se comparado a romancistas que se lançaram no fim da adolescência), alguém que, após ter posto no papel sua grande narrativa ficcional, deixou a ficção de lado, beira o excêntrico. Pois, se ele a abandonou, ainda assim continuou praticando a literatura por mais meio século. E eis aqui o que havia de realmente peculiar na trajetória desse autor: ele se dedicava a um gênero, compunha, sem tentativas e erros aparentes, algo notável e, então, mudava-se para o gênero seguinte.
Deste modo surgiram seus poucos ensaios, suas igualmente poucas peças teatrais, seus três volumes autobiográficos, seu tratado indefinível (filosófico? sociológico? antropológico?) "Massa e Poder", suas coleções de observações e aforismos que são, a rigor, um só fluxo contínuo de consciência, seu livro de viagem ("Vozes de Marrakesh") e mais alguns textos quase inclassificáveis como os que compõem "A Testemunha Auricular".

Diferentes culturas
Canetti se relacionava com os gêneros tão peculiarmente quanto o fez com línguas e países. Embora escrevesse sobretudo em alemão, esta não era sua primeira língua. Seus idiomas de infância foram o ladino (variante medieval do castelhano que os judeus expulsos da Espanha em 1492 continuaram a falar no sul da Europa e no norte da África), o búlgaro e o inglês. Nascido na Bulgária, ele descendia de uma, ou melhor, várias culturas diferentes: a do judeus sefarditas e a de Viena da monarquia austro-húngara. Depois de passar a juventude na Áustria, na Alemanha e na Suíça, ele se fixou na Inglaterra.
Seu romance, a história de um sinólogo apaixonado por livros e alérgico à humanidade, o possuidor da maior biblioteca da cidade, é não apenas um exame do caos com que a realidade invade e contamina a mais ordeira das mentes, como uma descrição não ou antipsicanalítica da loucura e também a exposição de uma misantropia fracassada. Basta percorrer seus outros escritos para entrever que, em "Auto-de-Fé", o autor conjurou os próprios fantasmas, lançando mão de sua arte menos para exorcizá-los do que para colocá-los, obedientes, a seu serviço.
Seus admiradores mais argutos, como o germanista triestino Cláudio Magris, vêem neste o seu livro fundamental, aquele no qual expôs o que queria, limitando-se, depois, a repeti-lo de formas diferentes ou a compor variações sobre seus temas. Talvez. Mas, como no século que passou houve raros pensadores dispostos a tematizar tão desencantada, meticulosa e cruelmente a natureza humana, cada qual de seus tomos acrescenta detalhes preciosos aos anteriores, formando afinal um conjunto articulado, este sim indispensável.


Auto-de-Fé
    
Autor: Elias Canetti
Tradução: Herbert Caro
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 59 (600 págs.)



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