São Paulo, domingo, 20 de novembro de 2005

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FERREIRA GULLAR

Sinal de alerta

Lembram-se de quando muita gente dizia que o presidente da República não resolvia os problemas do país porque não queria? Estava na moda "a vontade política"... Claro que a vontade de resolver os problemas é imprescindível, mas não basta. Pode haver exceções, mas, no geral, o presidente não resolve os problemas porque eles são difíceis de resolver e porque são muitos. Todo presidente -ou porque deseja preservar uma boa imagem na memória do povo ou porque quer se reeleger- procura governar da melhor forma possível. Isso não significa que o conseguirá, e aí entram os mais diversos fatores, desde o apoio que obtenha no Congresso, a correlação de forças econômicas e políticas que o sustentem ou combatam até o rumo que imprima à sua administração, os auxiliares que escolha e a sua própria capacidade administrativa.
Sim, porque há políticos que adoram o poder, têm enorme prazer em fazer política, mas horror a governar. Examinar um a um os problemas, discutir com seus ministros cada detalhe e as conseqüências efetivas desta ou daquela medida, são para certos governantes tarefas intoleráveis, verdadeira tortura. Brizola era um que adorava discutir política, articular, conchavar, mas dos problemas administrativos fugia às léguas. Lula tampouco quer saber dessas questões; há ministros que dizem nunca ter conseguido despachar com ele nestes 36 meses de governo. O que ele curte mesmo é fazer reuniões e discursar, como na sua época de líder sindical. E, por curiosa coincidência, tanto um quanto outro tiveram medíocre desempenho como deputados federais, talvez porque, para legislar, seja necessário se empenhar no estudo das leis existentes e das novas propostas, coisas que dão no saco.
Como o presidente não governa sozinho, pode compor uma equipe que venha a suprir suas deficiências, mas isso depende, entre outras coisas, de senso autocrítico e de modéstia, virtudes nem sempre comuns nos políticos.
A ilusão de que basta vontade política para governar conduz a uma outra ilusão, a do salvador da pátria, e a ignorarmos que as dificuldades são reais, que é difícil governar um país como o Brasil, marcado por enorme desigualdade de renda e grande desequilíbrio regional. A paixão político-ideológica desloca a discussão dos problemas concretos para o plano das acusações mútuas, das conspirações inventadas, da busca de desforra, enfim, para o plano que convém aos que nada querem mudar de fato.
Quanto mais ignorarmos os problemas reais, mais difícil se tornará diagnosticá-los e conseqüentemente mais difícil será resolvê-los, mesmo porque, além disso, deve o governante enfrentar interesses de toda ordem, tanto no plano político quanto no econômico, agravado pela venalidade daqueles políticos que querem tirar vantagens de cada situação. Para governar, o presidente tem que negociar com os próprios aliados, o que o obriga a concessões sucessivas na aprovação dos projetos de governo. O resultado, no final, é quase sempre entrar pelo desvio demagógico do populismo, ou seja, dos projetos que nada resolvem de fato, mas garantem votos para a próxima eleição. Assim, se adia a solução dos problemas estruturais e se mantêm as condições inaceitáveis em que vive a maioria da população, sujeita a pagar o preço da demagogia e, sobretudo, do jogo de interesses daqueles que, de um modo ou de outro, detêm o poder. Juntam-se, num conciliábulo espúrio, as forças econômicas e políticas, que passam a usar a máquina do Estado em função de seus próprios interesses. O povo, que, com seu trabalho e os impostos que paga, sustenta essa máquina, ganha mal, não tem assistência médica, não tem segurança e vê com temor o futuro de seus filhos.
Em face disso, a conclusão inevitável a que se chega é que a classe política, aliada a outros grupos de poder, se apropriou da máquina do Estado e tem como objetivo principal garantir as vantagens e os privilégios que conquistou. Os interesses individuais dos legisladores e os interesses eventuais dos partidos e dos grupos se sobrepõem à solução dos problemas do país.
Espero que estas considerações um tanto esquemáticas que aqui faço, embora nada tenham de novo, soem como um sinal de alerta para uma situação que, se não for mudada, pode conduzir o país, em curto prazo, a uma crise muito mais grave do que a atual. Uma crise (de que esta que vivemos agora é um sintoma) que poderá comprometer a ordem social e a governabilidade. A maioria da população não costuma se deter em análises políticas, mas o acúmulo de escândalos de toda ordem, envolvendo os gestores da máquina estatal, o Congresso, o Poder Judiciário e a própria Presidência da República, leva-a inevitavelmente a descrer desses poderes. E as conseqüências disso são imprevisíveis. Se a crise ainda não se manifesta nas ruas, é porque as entidades mobilizadoras estão alinhadas com o governo. Mas estas também se arriscam a se desmoralizarem.
Diante disto, a pergunta é: de que modo se expressará esse descontentamento se o povo se convencer de que o regime democrático se tornou uma farsa?
A responsabilidade do que venha a ocorrer cabe aos protagonistas da cena política brasileira.


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