São Paulo, terça-feira, 20 de novembro de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Literatura e liberdade


"Vida e Destino" traça painel com personagens massacrados à época da batalha de Stalingrado

NÃO É A TODA hora que você descobre um livro extraordinário do qual nunca tinha ouvido falar. "Vida e Destino", do ucraniano Vassili Grossman (1905-1964), foi adaptado para o teatro por Lev Dodin. Desde o início do ano, o espetáculo é apresentado em alternância entre alguns dos palcos mais prestigiosos da Europa ocidental e o teatro Maly, de São Petersburgo, onde ouvi falar pela primeira vez no autor e no romance.
Sabendo que eu não entendia nada de russo, a assistente inglesa de Dodin me aconselhou a assistir a uma montagem de Tchecov, já incluída no repertório do Maly, com legendas em inglês, em vez de me arriscar pelo menos conhecido "Vida e Destino", um enorme painel formado por dezenas de personagens, massacrados pela guerra e pelo totalitarismo, à época da batalha de Stalingrado. Mesmo assim, fiquei com o título na cabeça. Um título que não apenas remete a Tolstói (ao que parece, Grossman estava decidido a escrever o "Guerra e Paz" do século 20), mas anuncia o que o livro tem de mais frágil: o eventual sentimentalismo heróico, reminiscente de quando o autor ainda seguia os preceitos do realismo socialista.
Nem por isso esse romance de mais de mil páginas é menos maravilhoso. Como se não pudesse deixar de lê-lo, bastou eu pôr os pés na feira do livro de Santiago, no Chile, há mais de três semanas, duas depois de São Petersburgo, para bater com os olhos numa pilha de livros formada pela nova tradução espanhola de "Vida e Destino" (ed. Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores). Desde então, não consigo pensar em outra coisa além de voltar para casa e retomar a leitura da saga da família Shaposhnikov e de seu círculo de relações durante a Segunda Guerra.
Grossman nasceu em Berditchev, na Ucrânia. Graças à revolução, que permitiu aos judeus viver nas grandes cidades e freqüentar as principais universidades russas, pôde se formar em química, em Moscou, e dirigir pesquisas científicas antes de se tornar um escritor louvado pelo regime stalinista. Foi preciso passar pela experiência da guerra para compreender a real dimensão do totalitarismo, terminando por escrever uma obra-prima que só seria publicada na União Soviética mais de 20 anos depois da sua morte.
Com a invasão alemã, em 1941, Grossman quis lutar na frente. Por motivos de saúde, acabou correspondente de guerra para o jornal do Exército. Em 1943, cobriu a batalha de Stalingrado, uma das mais sangrentas da Segunda Guerra, quando a vantagem passou para os soviéticos. Avançou com o Exército Vermelho pela Ucrânia (onde sua mãe havia sido executada pelos nazistas, depois de sofrer a sanha recalcada do anti-semitismo local -em "Vida e Destino", o alter ego do autor recebe uma carta na qual a mãe relata, antes de ser evacuada para o gueto, a baixeza dos vizinhos, numa cidade ucraniana) até a Polônia (seu artigo sobre Treblinka será lido como peça de reconstituição nos julgamentos de Nuremberg) e Berlim.
De volta a Moscou, já não podia seguir escrevendo do mesmo jeito. Acabou rejeitado pelo regime que o incensara e, aos poucos, se tornou um sujeito intratável. Antes de mandar o manuscrito de "Vida e Destino" para os editores, em 1960, entregou uma cópia a um amigo escritor, Semion Lipkin. Impressionado com o texto, Lipkin fez algumas ressalvas e se mostrou incrédulo quanto à possibilidade de o romance vir a ser publicado na União Soviética. Foi o suficiente para cortarem relações. Quando, por fim, a KGB entrou no apartamento do autor e confiscou todos os traços do livro (até mesmo a fita da máquina de escrever), ninguém se lembrou da cópia entregue a Lipkin. Grossman morreu de câncer, em 1964. E foi essa cópia, microfilmada, que chegou clandestinamente ao Ocidente, onde, afinal, foi publicada nos anos 80.
Muito do impacto de "Vida e Destino" parece vir do fato de Grossman ter vivido o que relata. Há, no entanto, uma cena admonitória, em Stalingrado, quando um general russo discute literatura com um oficial. O general diz que a força e o interesse de "Guerra e Paz" se justificam pelo próprio Tolstói ter lutado na guerra e saber do que está falando. O oficial, constrangido, é obrigado a contradizê-lo: "Desculpe, camarada general, (...) Tolstói não era nascido na época da guerra contra Napoleão". O general se recusa a acreditar. E o oficial acaba, por outras razões, na prisão política de Lubianka, em Moscou. Afastando-se do realismo socialista, Grossman entendeu não somente que a literatura não é simples relato, mas que disso depende a sua liberdade.


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