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BERNARDO CARVALHO
Literatura e liberdade
"Vida e Destino" traça painel com personagens massacrados à época da batalha de Stalingrado
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NÃO É A TODA hora que você
descobre um livro extraordinário do qual nunca tinha
ouvido falar. "Vida e Destino", do
ucraniano Vassili Grossman (1905-1964), foi adaptado para o teatro por
Lev Dodin. Desde o início do ano, o
espetáculo é apresentado em alternância entre alguns dos palcos mais
prestigiosos da Europa ocidental e o
teatro Maly, de São Petersburgo, onde ouvi falar pela primeira vez no
autor e no romance.
Sabendo que eu não entendia nada de russo, a assistente inglesa de
Dodin me aconselhou a assistir a
uma montagem de Tchecov, já incluída no repertório do Maly, com
legendas em inglês, em vez de me arriscar pelo menos conhecido "Vida e
Destino", um enorme painel formado por dezenas de personagens,
massacrados pela guerra e pelo totalitarismo, à época da batalha de Stalingrado. Mesmo assim, fiquei com o título na cabeça. Um título que não
apenas remete a Tolstói (ao que parece, Grossman estava decidido a escrever o "Guerra e Paz" do século
20), mas anuncia o que o livro tem
de mais frágil: o eventual sentimentalismo heróico, reminiscente de
quando o autor ainda seguia os preceitos do realismo socialista.
Nem por isso esse romance de
mais de mil páginas é menos maravilhoso. Como se não pudesse deixar
de lê-lo, bastou eu pôr os pés na feira
do livro de Santiago, no Chile, há
mais de três semanas, duas depois
de São Petersburgo, para bater com
os olhos numa pilha de livros formada pela nova tradução espanhola de
"Vida e Destino" (ed. Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores). Desde
então, não consigo pensar em outra
coisa além de voltar para casa e retomar a leitura da saga da família Shaposhnikov e de seu círculo de relações durante a Segunda Guerra.
Grossman nasceu em Berditchev,
na Ucrânia. Graças à revolução, que
permitiu aos judeus viver nas grandes cidades e freqüentar as principais universidades russas, pôde se
formar em química, em Moscou, e
dirigir pesquisas científicas antes de
se tornar um escritor louvado pelo
regime stalinista. Foi preciso passar
pela experiência da guerra para
compreender a real dimensão do totalitarismo, terminando por escrever uma obra-prima que só seria publicada na União Soviética mais de
20 anos depois da sua morte.
Com a invasão alemã, em 1941,
Grossman quis lutar na frente. Por
motivos de saúde, acabou correspondente de guerra para o jornal do
Exército. Em 1943, cobriu a batalha
de Stalingrado, uma das mais sangrentas da Segunda Guerra, quando
a vantagem passou para os soviéticos. Avançou com o Exército Vermelho pela Ucrânia (onde sua mãe
havia sido executada pelos nazistas,
depois de sofrer a sanha recalcada
do anti-semitismo local -em "Vida
e Destino", o alter ego do autor recebe uma carta na qual a mãe relata,
antes de ser evacuada para o gueto, a
baixeza dos vizinhos, numa cidade
ucraniana) até a Polônia (seu artigo
sobre Treblinka será lido como peça
de reconstituição nos julgamentos
de Nuremberg) e Berlim.
De volta a Moscou, já não podia
seguir escrevendo do mesmo jeito.
Acabou rejeitado pelo regime que o
incensara e, aos poucos, se tornou
um sujeito intratável. Antes de mandar o manuscrito de "Vida e Destino" para os editores, em 1960, entregou uma cópia a um amigo escritor,
Semion Lipkin. Impressionado com
o texto, Lipkin fez algumas ressalvas
e se mostrou incrédulo quanto à
possibilidade de o romance vir a ser
publicado na União Soviética. Foi o
suficiente para cortarem relações.
Quando, por fim, a KGB entrou no
apartamento do autor e confiscou
todos os traços do livro (até mesmo
a fita da máquina de escrever), ninguém se lembrou da cópia entregue
a Lipkin. Grossman morreu de câncer, em 1964. E foi essa cópia, microfilmada, que chegou clandestinamente ao Ocidente, onde, afinal, foi
publicada nos anos 80.
Muito do impacto de "Vida e Destino" parece vir do fato de Grossman
ter vivido o que relata. Há, no entanto, uma cena admonitória, em Stalingrado, quando um general russo
discute literatura com um oficial. O
general diz que a força e o interesse
de "Guerra e Paz" se justificam pelo
próprio Tolstói ter lutado na guerra
e saber do que está falando. O oficial,
constrangido, é obrigado a contradizê-lo: "Desculpe, camarada general,
(...) Tolstói não era nascido na época
da guerra contra Napoleão". O general se recusa a acreditar. E o oficial
acaba, por outras razões, na prisão
política de Lubianka, em Moscou.
Afastando-se do realismo socialista,
Grossman entendeu não somente
que a literatura não é simples relato,
mas que disso depende a sua liberdade.
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