São Paulo, sexta-feira, 20 de novembro de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

Início e fim de caso


Tudo deu certo. Sentiu-se seguro em suas quatro paredes, agora era esperar por ela


FECHA A porta e suspira: ninguém o vira entrar. Seu amigo, o dono do apartamento de quebrar o galho, recomendara cuidado, principalmente com o porteiro, que já andava farejando bandalheira no 301, gente entrando e saindo em horas e rotinas estranhas. Ele então caprichara nas cautelas, entrou displicentemente pela portaria e, no elevador, apertou dois andares acima. No 501 morava uma velha que dava passes. Com o porteiro, formava a estrutura moral do prédio em Copacabana, zona braba, perto da Prado Júnior.
Tudo deu certo. Sentiu-se seguro em suas quatro paredes, agora era esperar por ela. O caso andava nos exórdios. Mulher difícil, fora um custo convencê-la ao passo fatal.
-O apartamento é seu?
Titubeou, pesou as circunstâncias, a mulher valia os riscos. Mentiu:
-É.
Ela então não hesitou. Marcaram dia e hora -foi quebrando outros galhos circunstanciais, os amigos sempre ajudam quando se trata de sacanagem, no mais tudo confortável, móveis e lençóis de circunstância, ar refrigerado, bar com geladeira e bebidas importadas, até mesmo uma Veuve Clicquot de boa safra. O amigo só fizera uma recomendação:
-Vê lá se a mulher não merece isso!
-Deixa por minha conta. Dissera ele, estufando o peito, seguro de si e de seus dotes de macho.
Examina o apartamento, as cortinas, os quadros. Há nus espalhados, uma atmosfera lasciva pelos cantos. No fundo, o enorme espelho escondendo um armário.
Olha o relógio. Está na hora, daqui a pouco a campainha tocará duas vezes, conforme o combinado. Contorna o espelho e encontra o armário, semiaberto. Vai fechá-lo e ouve o grito:
-Olha a minha mão! Vai apertar a mãe!
Alarmado, espia para dentro. Sentado no fundo, há um camarada vestido a rigor, descabelado e sujo de vômito.
-Que é que o senhor está fazendo aí?
-Não chateia!
-Exijo explicações!
O camarada levanta-se, cambaleante, empurra-o para sair do armário:
-Onde está a Helena? Onde estão os outros?
Há uma súbita vontade de grunhir, de fazer qualquer coisa dolorosa e vil. Mas a boca só consegue dizer:
-Exijo explicações!
Até que o camarada toma conhecimento de sua presença:
-Você não estava ontem na festa, estava? Acho que fiquei sem mulher. Helena já andava doida para sair com o Alfredo.
Nisso, a campainha toca. Uma e duas vezes.
-Olha, Talvez seja a Helena! Está arrependida de ter me abandonado aqui nesta espelunca e vem me apanhar!
Ele corre e abre os braços em cruz, como um mártir imolado ou um inspetor de trânsito:
-Nem mais um passo, desgraçado!
-Mas a Helena...
-Não é a Helena!
A campainha toca novamente. Dois toques aflitos.
-É ela!
-Não é!
-Seu!...
-É a tua!
Empurra o camarada e vai até a porta. Na afobação, ao invés de abrir o olho mágico, abre a porta e a mulher entra.
-Por que demorou tanto a abrir? Estava morrendo de vergonha lá fora! O porteiro me olhou esquisito...
Ela dá com o camarada de cócoras no chão, procurando levantar-se.
-Você teve coragem de convidar esse sujeito? Estou difamada!
O tapa estala em sua face. Ela corre e some pelo corredor, ele ouve o bater da porta do elevador. Cai no sofá, arrasado. O camarada consegue levantar-se. Vai à geladeira:
-Olha, aqui tem uma Veuve Clicquot que sobrou da festinha de ontem. Onde estão os copos?
Ele então vai até a copa lavar duas taças.
Da sala, o camarada adverte:
-Não use sabão que estraga o champanha! Eu vou lá fora arranjar uns biscoitinhos.
Está lavando as taças sujas da véspera e dá um urro. Perdera a tarde e a mulher. Haveria outras tardes e outras mulheres, mas aquela era especial, como a Veuve Clicquot da geladeira, herança do Belmiro, que comia todas as mulheres casadas da zona norte que desejavam ter uma aventura na zona sul. O trabalhão que dera, disputara aquela herança com o Godinho, que tinha um Cadillac conversível dos anos 50 e era dono de apartamento, no Flamengo, dando para a baía de Guanabara, quase em frente ao Pão de Açúcar. Godinho garantia que elas apreciavam a vista e sempre voltavam.
Amaldiçoou-se por ser pobre, sem quatro paredes em Copacabana. Agora perdia a mulher que mais cobiçara desde que Alice lhe dera o fora.
A campainha tocou e ele foi abrir. O sujeito trouxe biscoitinhos de polvilho.


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