São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 2000

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MARCELO COELHO

Por que somos todos tão consumistas

Como ainda não fiz minhas compras de Natal -a cada ano, aliás, elas diminuem- , sinto-me razoavelmente protegido do mau humor que em geral me acompanha nesta época. Ainda não entrei em nenhum shopping center neste mês. Já é alguma coisa.
Minto; estive no Pátio Higienópolis há coisa de duas semanas, em estado de total inocência. Precisava de um xarope para tosse ou de algo na papelaria, não sei bem (a gente nunca sabe exatamente do que está precisando quando entra num lugar desses). Como estava de carro, e ameaçava chover, não me pareceu absurdo usar o estacionamento do shopping.
O lugar é enganador. Da rua, tudo parecia calmo. As compras de Natal ainda não começaram, pensei. Foi assim que entrei num congestionamento subterrâneo, dando voltas e voltas à procura de uma vaga, como se eu próprio fizesse parte de um carrossel festivo, de uma decoração natalina em tamanho natural. Já na escada rolante, pude ouvir o rumor gigantesco do consumo: as vozes infatigáveis da reivindicação infantil, da negociação adulta, do debate conjugal, da desorientação generalizada.
Eu poderia esbravejar contra tudo isso, mas não é minha intenção. De resto, embora as pessoas comprem mais coisas durante o Natal, o verdadeiro consumismo não depende de data certa nem tem o objetivo concreto -dar presentes a alguém- que o justifica nesta época do ano.
O suplemento "Mais!" de domingo passado trazia questões interessantes sobre o assunto. Quais as causas do consumismo? O consumismo pode ser terapêutico? Nesse segundo ponto, havia uma divergência entre a psicanalista Ana Verônica Mautner e o antropólogo Everardo Rocha.
Para o antropólogo, fazer compras certamente não resolve os problemas internos de alguém que acaba de passar por uma separação conjugal, por exemplo; mas pode ser uma forma de "ritualizar a tristeza", do mesmo modo que, prossegue Rocha, "antigamente, a roupa preta sinalizava a entrada e a saída no período de luto".
Ana Verônica Mautner considera que o consumismo pode ser um "anestésico", dando um tipo de descanso ao sofredor. O sofrimento a que ela se refere não é, contudo, semelhante à tristeza ocasional, à crise momentânea em que Everardo Rocha parece estar pensando. Segundo a psicanalista, o consumismo nasceria da sensação de impotência experimentada pelo indivíduo contemporâneo. Comprar compulsivamente seria uma compensação para nossa falta de poder; não se trata, diz ela, de exibir o que se compra, mas de conseguir a posse do que se quer.
Arrisco alguns palpites. Do ponto de vista pessoal, reconheço em meus ímpetos consumistas mais esse efeito terapêutico-ritual a que se refere o antropólogo do que a "falta de poder" apontada por Ana Verônica. Comprar, para mim, é mais distração circunstancial do que necessidade.
Mas o que me parece interessante nas diferenças de pontos de vista entre o antropólogo e a psicanalista é que talvez reflitam uma cisão mais ampla entre as duas disciplinas que estão a representar; entre os modelos teóricos que, provavelmente, fundamentam suas respostas.
Quando se pensa no consumismo como um "ritual" -por mais metaforicamente que se esteja empregando o termo-, há, sem dúvida, o propósito de traçar paralelos entre a sociedade contemporânea e os povos incorretamente chamados de "primitivos". Consumir, como a roupa preta de luto lembrada por Everardo Rocha, tem a função de "significar", de "comunicar", de "exprimir" algo para outrem.
Quando se fala no consumo como "anestesia" para uma insuficiência de poder, como faz a psicanalista, o indivíduo está menos expressando algo para os outros do que tentando falar "consigo mesmo"; está sozinho, numa sociedade que, precisamente por ser móvel, instável, desconhece formas tradicionais de ritualização. É da diferença entre o contemporâneo e o tradicional que parece nascer a psicanálise; é das semelhanças entre ambos que parece falar a antropologia.
Sugiro uma outra diferença entre o contemporâneo e o tradicional, que talvez tenha relevância numa discussão sobre consumismo. Antes do advento da sociedade de consumo, talvez nossas fraquezas e desgraças fossem entendidas sob o signo da "perda". Paraíso perdido, decadência da humanidade, pecado, por exemplo, eram termos que explicavam nossa condição. Trabalho, castidade, disciplina e culpa seriam como que os meios para reparar essa perda, esse luto essencial.
Na sociedade de consumo, é como se o conceito de "perda" tivesse sido substituído pelo de "falta". Não somos infelizes porque perdemos alguma coisa, porque decaímos de um estado original ou porque fomos relapsos no dever de nos reaproximarmos do que foi perdido. Somos infelizes porque nos falta alguma coisa. Não decaímos: somos incompletos. Não nos cabe reparar nada; cabe-nos adquirir o que não temos.
Se isso é verdade, talvez o consumismo não seja tão ruim assim. Claro que não gosto dele; mas é também indissociável de uma cultura que pensa mais no futuro do que no passado; que não pensa no que perdeu, mas no que tem a ganhar. O modo com que essa mentalidade se concretiza é sem dúvida terrível e destrutivo; mas o que tínhamos antes, como forma de organização social, não deixa saudades. E não digo que devemos celebrar o consumismo; mas mesmo sua crítica não tem como sair do ambiente que o gerou.


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