São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 2000

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"No Coração do Mar" disseca história que inspirou o clássico de Herman Melville

A autópsia de Moby Dick

Obra venceu este ano o National Book Award, prêmio literário mais prestigiado dos Estados Unidos

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Desde que foi lançada em mares fictícios por Herman Melville, em 1851, a baleia Moby Dick nunca parou de crescer. No início deste ano, porém, um historiador norte-americano decidiu colocar no papel as verdadeiras medidas desse monstro literário.
O resultado foi "No Coração do Mar", livro que disseca o episódio que inspirou um dos grandes romances da literatura universal.
Escrita por Nathaniel Philbrick, a obra, recém-lançada no Brasil pela Companhia das Letras, mostra que a história real foi quase tão fabulosa e monstruosa quanto "Moby Dick" (leia texto ao lado).
Com a descrição crua da história do naufrágio do baleeiro Essex, pontuada por vastas cenas de canibalismo, Philbrick fisgou a edição de 2000 do prêmio literário mais cobiçado dos Estados Unidos, o National Book Award.
O historiador não era marinheiro de primeira viagem. Cresceu com o pai lendo-lhe a história desse naufrágio, foi jornalista especializado em navegação, velejador medalhado e é o chefe de um instituto de pesquisas marítimas em Nantucket, em Massachusetts (EUA), ilha da qual saiu a expedição que inspirou Moby Dick.
Foi de lá que Philbrick falou por telefone com a Folha. O historiador comentou o fascínio que o mar exerce no homem, falou das diferenças entre "Moby Dick" e a história real e assinalou que antes do naufrágio do Essex nunca uma baleia havia atacado fatalmente um navio. Leia a seguir trechos da entrevista com o historiador, que se prepara para voltar ao mar: está fazendo livro sobre a chamada Expedição de Exploração Norte-Americana, que mapeou boa parte do oceano Pacífico.

Folha - Por que o ser humano é tão fascinado por histórias de tragédias no mar: de Jonas e a baleia, na Bíblia, até "Titanic"?
Nathaniel Philbrick -
Até pouco tempo atrás, o mar era a grande fronteira do universo. Um tipo de lugar em que não havia nenhuma segurança. Nos EUA tínhamos outra fronteira considerável, o Oeste. O Oeste foi civilizado, mas o mar continuou, e continuará, a ser uma fronteira. Mesmo que o homem destrua todas as florestas, nunca acabará com os oceanos.

Folha - Mas por que a Lua, igualmente uma fronteira, hoje não exerce o mesmo fascínio?
Philbrick -
Está certo, mas devo dizer que esse cenário é novo. Posso dar meu testemunho de escritor que há 20 anos era muito difícil vender histórias ambientadas no mar. Décadas atrás, nos EUA, era tudo ligado ao Velho Oeste ou à conquista espacial. Ou os dois. "Guerra nas Estrelas", por exemplo, toma muita coisa emprestada da mitologia da conquista do Oeste. O mar passou a ser um fenômeno de público com a série de livros de Patrick O'Brian (autor irlandês morto este ano).

Folha - E por que animais enormes como as baleias e os dinossauros são tão atraentes?
Philbrick -
Tanto os dinossauros como as baleias, que não deixam de ser dinossauros vivos, são animais que nós, humanos, só conseguimos compreender muito vagamente. É um fascínio antigo nos homens. Basta olhar as histórias de dragões, as mitologias, os monstros. As pessoas sonham com eles há séculos. As baleias preenchem essa lacuna. São uma espécie de monstro vivo.

Folha - O sr. diz no livro que seu pai costumava contar para o sr., na hora de dormir, a história do naufrágio do Essex. O pai do sr. contava as partes sobre canibalismo?
Philbrick -
Felizmente ele não falava a parte de canibalismo. Se o tivesse feito, eu estaria agora em algum hospício por aí.

Folha - Em sua opinião, quais são as diferenças mais marcantes entre a história real e o que Herman Melville fez dela em "Moby Dick"?
Philbrick -
O final da história para Melville, o ataque da baleia ao navio, é praticamente onde minha história começa. Eu trato basicamente do que houve depois do ataque. É uma história de sobrevivência. Mas eu quero mostrar que esse naufrágio é ainda mais do que o episódio que inspirou "Moby Dick". É uma importante parte da história americana.

Folha - Mas que diferenças específicas o sr. salientaria?
Philbrick -
De modo geral, posso dizer que há bastante imaginação entre a história real e "Moby Dick". O Essex, o navio inspirador, era muito mais simples do que o Pequod (de "Moby Dick"). Sua tripulação não vinha de várias partes do mundo, como no romance. O Essex era uma história real, não uma fantasia.

Folha - Por que o sr. pensa que Melville não romanceou também o fim da história real, incluindo o canibalismo dos tripulantes?
Philbrick -
Acho que terminar com o naufrágio servia melhor aos propósitos dele, de mostrar a luta entre baleia e barco. Quanto mais eu pesquisava "Moby Dick" e a tragédia do Essex, mais eu descobria que, apesar de ter terminado a história com o naufrágio, Melville incluiu no romance todo o horror e o sofrimento reais.



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